FILMES ESCOLHIDOS: Noite Vazia (1964) e As Melhores Coisas do Mundo (2010)
“A cidade moderna é delimitadora de uma fronteira a partir da qual reconhecemos o rural, separamos o centro da periferia, o público do privado, a cena da obscena. Nela reconhecemos o cidadão, aquele que tem história e faz história, ou seja, quem realmente importa se tomarmos a perspectiva da modernidade excludente. Fora do centro, importa narrar a fim de mostrar o exotismo do excluído.” (COUTINHO, Angélica, pag. 390).
A cidade é representada de diversas maneiras no cinema brasileiro. Neste texto, farei uma comparação de elementos estilísticos e narrativos entre os filmes Noite Vazia (Walter Hugo Khouri) e As Melhores Coisas do Mundo (Laís Bodanzky). Apesar das grandes diferenças, é possível traçar diversos paralelos entre eles, e sua representação da cidade, sendo esta um conjunto de espaços e personagens.
“Nesse seu primeiro filme realmente urbano, Khouri demonstra sensibilidade em relação ao ambiente da cidade. As personagens existem nas ruas de S. Paulo: o vazio com que se depara o homem de negócios depois de fechar o escritório leva-o a preferir, à companhia da esposa, a daquelas meninas que ainda não são prostitutas e esperam encontrar na Galeria Califórnia um alívio para o orçamento mensal. (…) Também é verdadeiro o papel do dinheiro em Noite Vazia. Para afirmar-se, Mario Benvenuti precisa tanto do exibicionismo sexual quanto do monetário. Tem dinheiro, compra seu amigo e sua amante, que, para ele, se tornam objetos. É com um maço de notas jogado na cama, entre Norma Benguel e Gabriele Tinti, que ele pretende destruir a harmonia momentânea dos dois namorados.” (BERNARDET, 1967, p. 98)
No filme de Khouri, temos uma trama que envolve dois rapazes e duas garotas, em um apartamento, tentando se divertir através da noite. Luís tem esposa e filho, mas mesmo assim, precisa de afirmação para si mesmo. Convida Nelson – que está abatido pelo recente término de um relacionamento – e ambos rodam por São Paulo, nas mais diversas casas noturnas, à procura de “alguém diferente”. Por fim, encontram Norma Benguel e Odete Lara e vão, os quatro, para um apartamento de Luís, onde passam a noite, regada a sexo, tentando se divertir.
Em contrapartida, o filme de Laís Bodanzky apresenta Mano, um adolescente em fase de descoberta da sexualidade e todos os mitos que circundam essa iniciação. Fora isso, ele enfrenta problemas na família, mudanças no colégio e em seu relacionamento com os amigos.
“Mas são principalmente as mulheres os objetos do inventário: Odete Lara é a 368º na vida de Mario Benvenuti”, com essa afirmativa, Bernardet coloca a cidade como uma grande lista de itens à disponibilidade dos personagens, e isso pode ser confirmado simplesmente observando o comportamento de Mario Benvenuti para com as prostitutas. Em As Melhores Coisas do Mundo, somos apresentados aos personagens num bordel, onde eles pretendem perder a virgindade. Mano escolhe não transar com a garota de programa, e esperar pela oportunidade certa. Quando eles saem, Deco – um dos amigos – é acusado de ter pago com vales falsificados, e a solução para ele é sair correndo, ignorando o trabalho daquelas mulheres, de forma similar à mencionada por Odete Lara, quando ela diz que os homens mais novos tentam sempre dar golpe e não pagar pela noite, achando que estão fazendo um favor para as garotas.
Mais adiante no filme, Deco, mostra a Mano um arquivo de computador que lista todas as meninas com quem ele já teve algum tipo de relacionamento, de forma muito similar à contagem de Mario. A grande diferença é que uma dessas garotas da lista é uma amiga de ambos – Carol -, e Mano não concorda com essa forma-objeto de ver as pessoas, então ele começa a tentar fazer com que Carol perceba que André tem outras intenções.
Essa forma de ver as coisas e pessoas – como objetos – pode ser diretamente conectada à solidão das personagens de ambos os filmes. Mario Benvenuti precisa do dinheiro e do sexo para se afirmar, Gabriele Tinti está sempre alheio ao que acontece e aos seus sentimentos, Odete Lara e Norma Benguel se relacionam cada vez com homens diferentes, o que prova claramente sua solidão – enfatizada no momento em que Benguel diz que “gosta muito quando um cliente liga para marcar uma segunda noite”. Mano não tem namorada e passa por diversos problemas dentro de sua família (o pai se tornou homossexual e agora vive com um namorado, a mãe não sabe como lidar com a solidão, o irmão, que fica arrasado e suicida com o fim de um relacionamento), e ao longo do filme, perde a relação com a única pessoa com quem podia contar – Carol. Essa solidão do garoto é evidenciada nas três seqüências em que o mundo se move muito rápido e ele não sai do lugar (uma num ponto de ônibus, outra na escada, em frente ao prédio de seu ex-professor de violão, e a terceira dentro do próprio colégio, que apesar de imenso, para Mano está deserto).
“Reencontramos o pequeno grupo de indivíduos isolados, dividido em personagens definitivamente pervertidas, enrigecidas no vício, corruptas, e em personagens que ainda não foram totalmente conquistadas pela corrupção, cuja pureza, sensibilidade, espontaneidade, representam uma possibilidade de salvação. (…) A água purificadora aparece sob a forma da chuva que, na sacada, cai sobre o corpo nu das personagens no momento da verdade.” (BERNARDET, 1967, p. 97)
É no momento que a chuva cai que confirmamos quem ainda tem salvação, e quem já extrapolou na corrupção. Enquanto Norma Benguel tem memórias de bolinhos sendo fritos e um garoto que olha curioso para ela, quase paralelamente, Odete Lara acorda e comenta com Mario que teve um pesadelo terrível. Ao fim, na despedida entre Nelson e Luís, Nelson fala não ter certeza se quer participar da próxima noite – com a Renata e sua irmã -, mas Luís insiste, e ele parece topar, deixando em aberto se ele tem salvação ou não.
Em Brasil em tempo de cinema, Bernardet diz que “Walter Hugo Khouri indica claramente no fim de Noite Vazia que nada foi solucionado, e que é muito provável que tudo continue como antes“. Esse posicionamento do cineasta é diametralmente diferente daquele proposto por Laís Bodanzky. Khouri acredita que a cidade oprime as pessoas, e que é necessário muito esforço para escapar das garras dos pervertidos. Bodanzky, em seu filme, apresenta diversas situações em que os personagens se colocam contra a corrente, e conseguem provocar mudanças no ambiente que os cerca – como quando Mano reúne todos os discriminados do colégio para criar a chapa Mundo Livre, ou fazendo o abaixo-assinado pelo retorno do professor que se envolvera com a aluna, no qual obtém sucesso. A chapa não é vitoriosa, demonstrando que as mudanças não são tão fáceis assim, mas são possíveis.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967.
COUTINHO, Angélica. Do Não Lugar ao Lugar Comum: A Cidade no Cinema Brasileiro Contemporâneo. In: in CATANI, Alfredo Mendes [et al] (orgs.). Estudos Socine de Cinema: ano IV. São Paulo, Editora Panorama, 2003.
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