Day-to-Day

Representações do Sertão.

November 16, 2010

FILMES ESCOLHIDOS: Vidas Secas (1963) e O Auto da Compadecida (2000)

No decorrer dos anos, pode-se dizer que a representação do ambiente sertanejo, no cinema, mudou um bocado. Numa comparação entre Vidas Secas e O Auto da Compadecida, temos ligações claras entre os filmes, mas temos principalmente, grandes divergências em relação aos protagonistas de ambas as obras.

Sendo Vidas Secas um filme realista, Jean-Claude Bernardet afirma que “seu realismo provém de uma inteira reelaboração da realidade”, já em O Auto da Compadecida, o sertão é um ambiente fantástico, repleto de lendas e histórias sem explicação, com intervenção direta de santos e figuras religiosas, que participam ativamente da história – como no trecho em que estão mortos João Grilo, o padeiro Eurico, sua esposa Dora, o padre João, o bispo e Severino, e que acompanhamos a disputa entre Deus e o Diabo para se apossar daquelas almas, terminando com a ressurreição de João Grilo.

Na gama dos personagens principais e secundários, a figura do patrão é comum aos dois filmes, ainda que o patrão de Vidas Secas se aproxime mais do Major Antônio de Moraes, em O Auto da Compadecida, e não do patrão verdadeiro de Chicó, que é o padeiro – e que mal sabe fazer contas. O soldado também é elemento comum, mas a posição dele na sociedade é muito diferente. Enquanto Fabiano apanha do Soldado Amarelo quando eles vão à pequena festa na cidade, e não o mata, quando se encontram no meio do mato, justamente por causa da farda do homem, em O Auto da Compadecida, o padeiro Eurico, conversando com Vicentão, e se referindo à marcha militar na quermesse, diz “onde já se viu, o cabra ter que usar uniforme pra provar que é macho?”

“Sendo praticamente mudo, o problema técnico é menor e, às vezes, não importa que se entendam todas as palavras, antes pelo contrário, como ocorre nos dois monólogos superpostos de Sinhá Vitória e de Fabiano. Mas essa solução também é realista e estética: o sertanejo fala pouco e a rarefação da comunicação verbal corresponde ao nível primário em que vivem essas personagens condicionadas pelo essencial” (BERNARDET, 1967, p. 141)

A inteligência dos personagens é um fator que distancia bastante os sertanejos nos dois filmes. Enquanto em Vidas Secas, Fabiano e Sinhá Vitória mal conversam, e sua comunicação verbal é desimportante, João Grilo fala pelos cotovelos, e cada palavra do que ele diz é importante, e ainda mais: destinada a enganar alguém, porque ele é mais esperto, e passa por cima dos outros elementos. Como nunca teve ninguém pra lhe ajudar, teve que virar esperto, ou morrer, algo totalmente oposto da opção de Fabiano, que é praticamente um animal, no sentido físico.

Os personagens de ambos os filmes simplesmente surgem na tela no começo do filme, sem maiores explicações de onde vieram, ou para onde pretendem ir, e a história se desenrola em episódios bem claros. Em Vidas Secas, isso acontece em função do livro, que é escrito em capítulos totalmente desconectados, unidos apenas pelos mesmos personagens. O Auto da Compadecida, era minissérie e virou filme, o que acabou colaborando também nesse aspecto, mas olhando o contexto do sertão, pode-se dizer que a vida não tem uma constância, um rumo definido.

“A vida organiza-se em Vidas Secas a partir do momento em que Fabiano encontrou uma casa: sem casa, a vida é andança. Fora vivem os cangaceiros, fora andam os imigrantes” (BERNARDET, 1967, p. 143)

Podemos considerar como definido o destino idealizado, que seria a “capital”, para onde rumam todos os imigrantes, e para onde Fabiano e Sinhá Vitória estão sempre caminhando, até que a chuva os atraia de volta para o sertão. Em O Auto da Compadecida, temos um diálogo entre Dora e Rosinha, em que Rosinha diz que se o pai deixasse, viveria ali no sertão, enquanto Dora, que vive ali, diz para ela ir logo para a capital.

“Ora, justamente as principais personagens do cinema brasileiro não são integradas na sociedade. Os Fabianos, os Manuéis, são por ela explorados e rejeitados. É o homem abandonado, e seu ambiente não é uma construção de alvenaria, mas sim a própria natureza” (BERNARDET, 1967, p. 143)

Em O Auto da Compadecida, o discurso de Nossa Senhora – quando só falta ser decidido o destino de João Grilo-  enfatiza bastante a posição do sertanejo, que nesse momento se aproxima da de Fabiano – como retirante que foge da seca, mas que volta assim que vê a chuva -, porque Grilo “dava graças a Deus por ser um sertanejo pobre, mas corajoso e cheio de fé”. Fabiano é todas essas coisas, à exceção do “dava graças a Deus”, pois em Vidas Secas temos quase nenhuma representação religiosa.

A religião é apenas uma das formas de manifestação da rica cultura sertaneja, muito presente no filme de Guel Arraes. Além dela, temos uma grande presença da música, de figuras sociais  – o major Antônio de Moraes, rico que manda e desmanda no vilarejo, o padre e o bispo sempre atrás de dinheiro, o cangaceiro que mata por falta de opção,  os soldados sempre fardados e que representam a lei. Na obra de Nelson Pereira dos Santos, o sertão é de todo árido, até mesmo no campo da cultura, e “a luz branca, ofuscante, obtida por José Rosa e Luís Carlos Barreto para Vidas Secas, foi um verdadeiro manifesto do fotógrafo brasileiro” (Jean Claude Bernardet) só reforça essa aridez, contrapondo a luz fantasiosa de O Auto da Compadecida, que em muitos momentos ganha diferentes matizes, a depender do que está sendo mostrado.

O ponto mais curioso que une os dois filmes é, curiosamente, a presença de cachorras. Em Vidas Secas, Baleia. Em O Auto da Compadecida, Bolinha. Enquanto Baleia é tratada como animal, e age como gente, Bolinha é tratada como gente, e age de forma puramente animal. Chicó até enfatiza isso, quando diz “não aguento quem gosta mais de bicho do que de gente”, e que pode ser comparado à situação dos dois meninos, filhos de Fabiano e Sinhá Vitória, que nem nome tem, e são tratados pelo filme como animais.

Apesar de todas as diferenças, o final das duas obras é muitíssimo parecido, assim como o começo. Em ambos, os protagonistas saem pela estrada, pela aridez, sem rumo, sem dinheiro, sem futuro, numa vida que se repete em ciclos infinitos.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

XAVIER, Ismail. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo, Cosac Naify, 2007

BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967.