Day-to-Day

(m)Eu Monstro.

June 6, 2015

Eu sou um sujeito calmo, a essa altura do campeonato não é mais arrogante falar sobre mim mesmo. Também sou uma pessoa boa, majoritariamente. Não faço nada com objetivo de desagradar ou ferir ninguém, inclusive quando percebo que isso possa ser uma consequência indireta dos meus atos. Acho que meus momentos mais “agressivos” são dirigindo, e mesmo assim, o ápice é xingar com as janelas fechadas, questionar a existência de certos motoristas e não dar passagem pra um ou outro perdido que não usa a seta sinalizar ou que tenta cortar filas, se achando malandrão. Fora esses casos, eu sou bom e quieto.

Muito, mas muito mesmo, raramente eu explodo com alguma coisa, e são situações pontuais. Nada acumulado ao longo de mais do que três ou quatro horas. Pra passar uma noção de quão incomum isso é, meus amigos mais próximos só devem ter visto acontecer umas duas ou três vezes nos últimos doze anos. Eu mesmo vi mais algumas, mas estava sozinho, “contra o mundo”, contra o Detran ou contra filas imbecis. Nessas ocasiões a explosão não passa de um mau humor e uma linha de xingamentos ininterrupta em voz baixa, questionando a validade da coisa que me irritou.

Gosto de tudo em que trabalho e apesar de me estressar com alguns pedidos de alterações, geralmente é por achar que são desnecessárias ou por preguiça/vontade de declarar o serviço por terminado. Esse stress também não é lá grande coisa, tipo um “Ai, caralho, lá vamos nós arrumar essa porcaria de novo, cadê aqueles keyframes todos?”.

Uma das minhas alegrias de vida foi a mudança de Salvador para São Paulo. Sempre me identifiquei mais com o ritmo paulistano do que com o soteropolitano. Achei meu próprio ritmo lá e fui com ele por uns bons seis anos. Aí eu e a May resolvemos ir pra Vancouver. Fui na frente, três meses. Já contei essa parte mil vezes, mas dessa eu vou tentar entender – e explicar – como tudo isso escrito até aqui se junta e afeta esse momento de minha pífia existência.

Por motivos de entendimento visual, digamos que eu tenha três “tanques”, um para trabalho, um para coisas de casa, e um só pra May, que ficam um em cima do outro e a tampa do de baixo só se abre quando o de cima tá leve o suficiente. Quando um sobrecarrega, explode, e aí eu viro bicho, como explicado acima. Trabalho, Casa e May. São os três elementos principais que compõem meu dia-a-dia. Nesses três primeiros meses sozinho, o tanque da May tinha espaço de sobra. Eu já tinha passado por um relacionamento à distância – dos difíceis – e a gente tava super bem nesse processo. Quem viveu sabe: a melhor parte de um relacionamento à distância é o reencontro. Voltemos aos tanques. Em trabalho agora entrava a VFS. Entrava não, inundava, enchendo e esvaziando a cada dia, a cada assignment, onde sempre me lancei como se fosse o único, mirando alto e fazendo sacrifícios pra alcançar. O tanque da casa tava ok. Tão ok que eu comecei a encher ele com a VFS também, porque não tava dando conta. Quando eu devia estar relaxando, passeando, socializando, whatever, eu comecei a trabalhar noite a dentro por antecipação ao fim do Term que indicava uma sobrecarga.

Inconscientemente comecei a jogar a escola no tanque da May também porque os outros dois constantemente chegavam perto de estourar. Aí foi chegando a hora da May chegar, a melhor parte de tudo. O problema é que quando ela chegou os outros dois tanques estavam cheios e eu não conseguia chegar no dela, pra estar inteiro no que quer que fizéssemos. E isso era durante o break entre um term e outro. Quando começou o term 2, a parada ficou ainda mais tensa porque o ritmo era ainda mais intenso, e agora eu tinha que lidar com tudo ao mesmo tempo, a gente morando junto e tal. Não é difícil prever, antes do fim do term, dois desses espaços quebraram. O do trabalho e o da May. Não necessariamente nessa ordem.

O do trabalho quebrou de um jeito pessimista, não me sentia confiante no que tava fazendo, não achava que ia conseguir qualquer coisa quando acabasse o curso, “qual o objetivo de tudo isso, se a gente vai voltar pra mesma coisa depois?”, “e se a gente não conseguir ficar no Canadá?”. Insegurança do caralho, que é algo totalmente fora da lista de coisas que sei lidar. Sério, minha assinatura do gmail foi “Gênio de Plantão – A modéstia nunca foi o meu forte” por anos e anos, de tão seguro e brincalhão que eu era em relação às minhas habilidades. Depois de um tempo eu tirei a assinatura, por motivos profissionais, pra lidar com pessoas que eu não conhecia ainda e que podiam levar aquilo tudo muito a sério.

Com a May foi diferente. Bem diferente, porque com ela não deu a “sorte” de eu “só” ficar inseguro. Em uma noite, que não lembro nem mais entramos no assunto, eu explodi e não foi com violência. Eu falei coisas que até hoje me entristecem pra caralho só de lembrar. Eu tenho pra mim que nunca vi a May tão triste, e pior que isso, triste por algo que eu fiz. Descobri essa coisa dentro de mim, capaz de tanto estrago com tão pouco esforço que me assustei. Até hoje não me perdoei por essa conversa porque não consigo lidar e aceitar que isso também seja eu. A capacidade de machucar tão profundamente outra pessoa – a que eu mais amo e mais me ama -, que vai contra tudo que eu me esforço e luto. Foi tão terrível que não teve nem briga, ela só caiu. Depois veio a insegurança, o medo de que isso acontecesse de novo, o medo que me fez sabotar tudo que a gente tem junto – ainda inconscientemente – pra não correr risco de repetir o feito, em nenhuma escala.

Ao longo das semanas e meses seguintes, isso ficou em mim. Não tinha conseguido identificar direito até uns dias atrás, já aqui em Salvador. Uma sensação de não querer lutar, de não querer seguir adiante, de não querer enfrentar os desafios, de não achar que eu mereço fazer parte de qualquer coisa, porque me vejo como o monstro, sempre esperando a pior ocasião pra foder a porra toda. Um sentimento de não ter valor que vem de mim mesmo, e não de terceiros, e um medo sempre presente de deixar essa coisa sair. Por isso que eu me saboto, me enfraqueço, não sinto fome, é uma parte de mim tentando enfraquecer o todo, porque assim, a parte ruim enfraquece também. O que mais me preocupa agora é que não sei como sair do ciclo, nem sinto que eu – como um todo – quero sair. Uma parte de mim quer, e tô tentando redirecionar toda a força pra ela, mas tá foda.

Isso é uma primeira leitura, com algumas linhas de raciocínio interconectadas. Pode ser que não seja tão trágico como eu coloco aqui, pode ser que seja exatamente isso.