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Naldinho e a Tecnologia.

February 13, 2010

Naldinho – ou Arnaldo, para os menos íntimos – sempre foi um cara cético em relação à ciência. O problema todo começou quando, aos seis anos, ele ouviu a avó – religiosa fervorosa – comentar que essa tal de tecnologia era coisa do diabo, e que na sua criação o homem se virava perfeitamente bem sem aqueles aparatos todos que agora dominam o cotidiano.

Durante o colegial, as aulas de Física e Química só fizeram acentuar essa descrença. Foi entendendo como as coisas funcionavam que Naldinho ficava cada dia (ou aula) mais abismado com o fato de o mundo até hoje não ter explodido na nossa cara e exterminado a todos. No dia que aprendeu que era uma explosão no motor que fazia o carro andar, o rapaz voltou pra casa andando, e essa passou a ser sua rotina. Ia para as aulas e voltava sempre a pé. Quando questionado sobre o comportamento estranho, justificava:

– Você quer mesmo que eu confie num carro? Uma caixa de ferro onde ficamos presos, com algumas aberturas tampadas por material transparente, travas que nos impedem de sair ou entrar, esquemas estranhos de luzes amarelas e vermelhas que piscam, isso tudo sobre aros de borracha preenchidos com ar a altas pressões, que se desloca através de explosões de um material altamente inflamável, que por sinal fica armazenado em grandes quantidades no próprio veículo, podendo mandar tudo pelos ares a qualquer momento? Não mesmo!

Todos contra-argumentavam com a questão da segurança, da praticidade, do desenvolvimento, mas ele era irredutível. Esse é só um exemplo breve de como Naldinho encarava as coisas. Seu dia-a-dia era repleto de desconstruções das mais diversas inovações, ressaltando seus perigos e imprevisibilidade, sempre se mantendo afastado dos mais descolados e “mestres de feiras de ciências”. Agora vejam bem: só porque Naldinho é cético, não significa que não se beneficie de algumas coisas dessas novidades, mas só o essencial mesmo, afinal “ninguém mais tá na idade da pedra“, como ele mesmo diz.

Atualmente, já crescido, o Arnaldo é casado com a Pâmela, que morre de vontade de ter filhos. Filhos que ele nega veementemente. “Nem pensar que eu vou colocar meus filhos num mundo onde existe coisa tal como Bomba de Hidrogênio!” – Bomba de Hidrogênio era a máxima do Naldinho. Qualquer coisa podia ser justificada com o absurdo que era a concepção de tal artefato, visivelmente sem utilidade social, ou qualquer utilidade sequer que não fosse relacionada a exterminar grandes numeros da própria população humana que a desenvolveu.

No bar, outro dia, ele chegou com uma nova, enquanto recebia sua garrafa de cerveja gelada. Cerveja, por sinal, é uma das coisas que o Naldinho mais gosta. “Essa é das antigas, que nem o vinho, é tradição da humanidade. Das antigas mesmo“. Então, enquanto pegava a cerveja, tava ouvindo o Betão contar do assalto ao banco do lado da casa dele, interrompe a história e pergunta pro garçom se aquela cerveja tava na geladeira ou num balde de gelo.

– Puta que o pariu, Arnaldo. Qual a diferença, cara?
– É que, hoje cedo, parei pra pensar e concluí que geladeira é uma coisa estranha pra caralho.

Já tinha tempo que o sujeito não aparecia com uma nova. A turma já se atiçou logo pra ouvir e dar risada. Ele nem ligava mais pros risos, tinha desistido de converter as pessoas, só esperava que a velha guarda o entendesse, e não tentasse desconvencê-lo – coisa que já tinha se estabelecido há bastante tempo também: ninguém mais tenta demover o Naldinho de suas concepções.

A galera fez silêncio, aguardando a resposta do garçom e de olhos fixos no Arnaldo, que ainda segurava sua cerveja.

– Tava no freezer, senhor. Tá quente? Quer que eu traga outra?
– Não, tá gelada, mas me traz uma quente então. E um balde de gelo, daqueles que esses moleques mais novos gostam, com várias cervejas dentro. É isso, me vê um daqueles.
– É pra já, chefia!
– o atendente adentra o balcão e passa para os fundos do bar.

– Explica essa história aí, Arnaldo. Como é a parada da geladeira?
– Espera, Rubens. Espera o camarada trazer minha cerveja!

O garçom trouxe o balde cheio, com várias cervejas espetadas no gelo, botou na frente do Naldinho e já ficou por ali mesmo, pra ouvir a história que permeava um pedido tão incomum. O cético, por sua vez, tirou o trambolho de cima da mesa e colocou ao lado de sua cadeira. Isso ficou subentendido por todos como “essas são as minhas, as de vocês, podem pegar da geladeira mesmo”.

– Geladeira é o seguinte… Que nem um carro, é uma caixa de metal, só que com uma porta bem grande na frente, que é pra disfarçar o fundo, uma série de canos onde o ar é comprimido e expande, fazendo com que o lado de fora esquente e o de dentro esfrie. Ah, e tudo isso movido pela energia que é gerada muito longe daqui, numa hidrelétrica provavelmente, que eu NEM PENSO EM COMENTAR OU ANALISAR.

Sem muito retorno das pessoas, que continuam em silêncio, Naldinho percebe que não foi enfático o suficiente em relação ao refrigerador.

– Gente, gente, pensem no conceito da geladeira. Além do que eu já falei. Pra que serve uma geladeira? Pra guardar comida, e ela durar mais do que naturalmente duraria. Que tipo de comida? – ele espera uma resposta que não vem.

– Frutas, verduras, que são reservas de energia dos vegetais, para sua própria sobrevivência e multiplicação. Leite, que por sinal é a bebida de bebês de vaca, e não de gente grande! Água, que constitui a maior parte do nosso organismo, então, por conveniência, a gente GUARDA um tanto em casa, pra reabastecer as reservas quando der na telha. E o pior de todos: carne.

– A gente guarda bicho morto na cozinha, e ainda no frio, que é pra apodrecer mais devagar. Vocês não estão percebendo que tem algo muito errado aí? Bicho morto apodrecendo, gente! O que você acha que é aquele filé, ou aquela picanha embalada a vácuo lá no fundo da sua geladeira? Vácuo é ainda pior, que além de morto, ainda fica lá, numa embalagem totalmente sem ar! Como é que tira o ar de uma coisa, meu Deus?

Ninguém interrompe, o sujeito continua.

– Não percebem como essa onda de tecnologia tá acabando com a humanidade? A gente não tem mais que caçar, alguém caça por nós, e a gente guarda a carniça na geladeira! A gente não tem mais que plantar – que por sinal já é um conceito estranho -, nem colher! Alguém já fez isso por nós, e a gente guarda as frutinhas ali, reluzindo debaixo daquela luz amarela que acende toda vez que a porta é aberta. A gente não tem nem mais que se estabelecer perto de fontes de água, porque até isso já deram um jeito de colocar dentro de nossas casas! O ser humano tá virando bichinho de estimação de si mesmo!

– Qualquer dia, alguém no rádio vai dizer “Senta!” e todo mundo vai sentar e ficar sacudindo a bunda, esperando o próximo comando!

Ele conclui, triunfante, tomando um longo gole direto do gargalo da sua cerveja quente. Alguns fazem meneios com a cabeça, considerando o que ouviram, ou simplesmente fingindo que entenderam – eu sou um dos que se enquadra na segunda opção. O silêncio durou alguns segundos, até que alguém em outra mesa gritou pelo garçom – que tinha ficado ali por perto, ouvindo tudo. A velha guarda foi se reanimando aos poucos, tomando sua bebida ou atacando a porção de pititinga quase intacta no meio da mesa. Depois desse discurso, não sobrou muito assunto para conversas naquela noite.

Tenho que marcar uma reunião com a turma, a gente tem que prezar pelo futuro do amigo. Depois dessa da geladeira, acho que o Naldinho tá saindo do campo da tecnologia e se enveredando pela Biologia. Qualquer dia ele vai concluir que viver não faz o menor sentido, pela lógica. Que é quase mágica. Já tô torcendo pra que ele continue vindo ao bar toda semana antes de concluir isso, pra a gente continuar ouvindo essas abstrações que só ele é capaz de fazer.

  • Tito Ferradans February 13, 2010 at 2:00 am

    Não ficou exatamente como eu queria, mas até que gostei do resultado. Opiniões?

  • fátima February 13, 2010 at 7:57 am

    Idéia genial! Muuuuita coisa a ser explorada no princípio: a avó e sua crença no diabo. O diabo foge da cruz e Naldinho foge da tecnologia pra fugir do diabo. Mas, assim fazendo, o diabo/tecnologia é quem determina toda a vida de Naldinho. Quando ele virar “Arnaldo’, algo vai acontecer. Dá um roteiro muito legal. E têm pontos que furaram: cerveja gelada e gelo vêm ambos da geladeira. A defumação é natural (não precisa de ‘tecnologia’) e ‘das antigas’, de quando o mundo ainda não tinha geladeira e precisava armazenar alimentos. É mais fácil Naldinho optar por uma saída da vida…da cidade, indo pro campo/meio do mato ( e talvez ali, na dureza, aprenda a bem-dizer a tecnologia), que a saída da vida para a morte real. Ártemis X Athena…. Viajei, viajei, viajei. Adorei! Personagem que cria e alimnenta um novo olhar. E, já tem a televisão que diz ao bicho humano, SENTADO!, e ele, obediente, se senta e fica…)

  • Tito Ferradans February 13, 2010 at 9:49 am

    O gelo vem da geladeira, dona fátima? Gelo não existe em condições naturais? (Tá parecendo os meninos dizendo que o leite vem da caixa). O bar pode não oferecer esse gelo ‘natural’, mas ele pegando o gelo, que existe na natureza, e usando para resfriar a cerveja, já é mais ‘aceitável’ que esfriar na geladeira do diabo.

    De fato, a defumação é natural, mas o ato de guardar carne apodrecendo dentro de casa não faz lá muito sentido. Tudo bem, vou trocar esse exemplo por algum mais “moderno”, tipo “vácuo”! Hahahaha! Bem apontado.

    Eu ia usar essa deixa da televisão, mas apaguei o parágrafo, porque ia implicar que ele assiste TV (se contradizendo), pois fisicamente falando, TV é outra ‘quase-mágica’. E isso da ordem acontece MESMO, é só você olhar pela perspectiva da propaganda, que convence as pessoas a comprarem produtos que não precisam.

    Por fim, se ele achar que a saída é fugir pro campo, isso fica uma referência muito direta ao bucolismo, à vida tranquila, ao romantismo, dá muito encaminhamento para o futuro do personagem e esse não é o objetivo da crônica. É só pra colocar o leitor pra pensar, como você mesma fez! Cada um cria sua viagem com o fim da coisa!

    Ufa, acho que é só isso!

  • fátima February 13, 2010 at 9:54 am

    ‘tendi! beijos

  • Vick February 13, 2010 at 3:40 pm

    Por que eu tô dormindo toda vez que você escreve coisas legais?

    ASS: VICK (de novo) ¬¬

  • Vick February 13, 2010 at 3:43 pm

    Engraçado como você faz comentários parecidos com ‘Naldinho’ algumas vezes… não desse nível…mas algo que me deixa olhando pra você com cara de ‘ham?’ por um bom tempo.
    Te amo, Vick
    (QUE INFERNO! COMO SAI DISSO,SENDO QUE EM OUTRAS ABAS VOCÊ TÁ EDITANDO?)

  • FiuzaLima February 22, 2010 at 5:02 pm

    E no carnaval, Carlinhos Brown grita pro povo: ” – Todo mundo pra diereitaaa!!!” E o povo se amontoa (” – Qual direita, a minha ou a dele?”).

    Ficou legal o modo como o personagem foi construido, fazendo uso de ‘exageros’ ele aponta vícios irracionais de nossa sociedade tecnológica.

    Me lembra algo que andei conversando com meu avô sobre os meninos
    mimados que vemos hoje em dia. Moleques jovens adultos enjoados que reclamam pra tomar banho frio ou acordar cedo e que apontam pra comida dizendo que não comem isso ou aquilo – segundo meu avô, toda mulher deveria desconfiar da virilidade de um homem enjoado.

    Esses moleques jovens adultos enjoados são fruto de uma educação fácil, que coloca o conforto individual acima de coisas que, a maioria nem sabe, muitas vezes podem se tornar um prazer – ou, ao menos, novas oportunidades de crescimento pessoal. Esse conforto gerado pelos avanços tecnológicos gera o comodismo social que temos visto ao nosso redor.

    Me desespero ao ver que os jovens de minha idade (alguns um pouco mais velhos e boa parte dos mais novos) não têm idéia do que é a cidade onde moram, não sabem como andar de ônibus, não sabem o que é andar a pé. (Aviso que vou generalizar) São pessoas que acabam por ver as coisas de modo superficial, pois conhecem pouco a realidade geral e, por isso mesmo, não têm um referencial comparativo ao mundo confortavel ao qual estão acostumados.

    Crianças que vão crescendo e, ao contrário de ganharem velocípedes (velotrol, triciclo – sei lá), montam em motinhas com motores elétricos que fazem um barulho infernal. Moleques que não engatinham mais quando bebês e que quando crescem não andam de bicicleta pq rala o joelho (se cair).

    Que porra de sociedade mimada é essa? Tô revoltado.

  • Tito Ferradans February 22, 2010 at 8:05 pm

    Porra, esse ponto foi muitíssimo bem apontado, sr. Donk.

    É esse tipo de comentário, de tempos em tempos, que me faz continuar a escrever.

  • Fiuza February 23, 2010 at 9:58 pm

    É… Eu tava revoltado.
    =D
    Hoje to mais não – e acho que o causo de Naldinho e a Tecnologia pode render umas boas filmagens…