Registro 04

REGISTRO 04, CAPÍTULO 01

“Mais um dia no inferno”.

Eram seis horas da manhã e já era esse o tipo de pensamento que passava pela cabeça de Romanov. Em sua casa de campo o dia já esquentava e brilhava afetadamente. Mas o calor não era, nem de perto, o que levava Romanov Vassilli a pensar aquele tipo de coisa.

Ainda sonolento, ele se aproxima de uma espécie de aquário espelhado que ocupa a mesa de jantar. O homem, na faixa de seus quarenta anos, grisalho e com a barba por fazer, com as feições endurecidas pelo tempo destampa o estranho objeto e retira de dentro dele uma garrafa contendo um líquido transparente. Vodka, produzida artesanalmente em uma destilaria não muito longe dali. Vassilli retira cuidadosamente a tampa da garrafa e sorve um generoso gole da bebida, que desce queimando até seu estômago. Ele contrai os músculos da face num espasmo de desconforto, e por fim suspira:

– Nada mal para começar o dia.

REGISTRO 04, CAPÍTULO 02

O ano é 2009. Ano seguinte à catástrofe. Vassilli, nascido na abertura da década de 70, servira ao exército soviético no final da Guerra Fria. Após a crise do socialismo e falência russa, o pobre soldado juntou seus últimos trocas e comprou uma casa em Ilyintsi, pequeno vilarejo de camponeses, a apenas 80 km da usina nuclear de Chernobyl. O motivo da escolha, ele alegou na época, quando seus amigos o advertiram: “lá a vizinhança é silenciosa e é tudo mais barato!”

Num final de tarde de Maio passado, a vila foi atingida por um violento terremoto. Os noticiários de TV e rádio alardeavam uma guerra e que o fim do mundo estava próximo. Romanov já havia visto crises parecidas na época da guerra, e portanto nem se incomdou. Logo após esta tarde, todas as transmissões foram interrompidas, e o vilarejo passou três dias encoberto nas trevas. Nada se via ou ouvia vindo de fora das janelas, apenas uma absoluta nuvem de fumaça negra. O calor era insuportável e a escuridão deixou a todos apavorados por mais de setenta e duas horas. Com o surgimento de uma tímida alvorada, a maior parte da população partiu. Ficaram apenas alguns dos camponeses mais idosos, além de Vassilli e seu cachorro de estimação, o Czar, como era assim chamado em visto de seu comportamento majestoso e imperativo.

Ao fim de poucos dias, a situação voltou ao normal, exceto pelo calor, que não amenizava nunca. Em algumas semanas o gado morreu, e ao fim de um mês não se via um animal vivo sequer, além do cão de Romanov. As plantas se tornavam cada dia mais desbotadas, e davam menos frutos e grãos. Em apenas dois meses, o resto dos habitantes da vila pereceu, seja pelo calor, pela fome ou por motivos até então desconhecidos.

O cenário ia ficando mais e mais amarelado e sem vida. A vegetação não morrera, mas fraquejava. Olhando-se em qualquer direção, ao longe, bem ao longe, perto da linha do horizonte, era possível ver um contorno negro que nunca se aproximava ou desaparecia. Vassilli se tornava mais ranzinza e solitário. Sobrevivendo a duras penas com sua plantação escassa e sua destilaria improvisada. Ele não sentia falta dos outros, e não raramente, saía com Czar para excursões pelo “inferno”, como chamava o lugar.

Entretanto, o que o ex-soldado soviético experimentava era apenas um pesadelo, dentro de um pesadelo maior ainda. O resto do planeta estava imerso em trevas, forrado por uma espessa camada de poeira, resultado da queda do grande asteróide. Poucos eram os sobreviventes, e Romanov Vassilli era um deles. O terremoto do impacto acabara causando ainda mais problemas na usina nuclear já fragilizada pelo acidente de 1986. A cada segundo em que a população de Ilyintsi estava imersa na escuridão, centenas de milhões de fissões nucleares ocorriam nos reatores atingidos, culminando com vazamentos colossais de radioatividade e calor nas circunvizinhanças. Por motivos cientificamente desconhecidos, a radiação abriu uma grande bolha na nuvem de poeira, fazendo o Sol voltar a brilhar no céu limpo de Ilyintsi, Pripyat e proximidades. E foi aí que a população partiu, rumo ao desconhecido, e à morte certa. Os que sobreviveram por muito tempo duraram uma semana, andando noite e dia sem sequer chegar à fronteira da bolha com a escuridão. A caravana de refugiados foi atacada diversas vezes, por seres tão horrendos que pareciam saídos das terríveis profundezas de uma mente distorcida. Além do calor radioativo, que fazia vítimas a cada hora. Ao fim de pouco tempo, os corpos degenerados se levantavam, sob o efeito da Mattis Imortum, vagando pelos campos desolados em busca de alimento. Sua pele perdia a tonalidade e o brilho, se tornando gradativamente amarela também, e a carne apodrecia, exalando um odor insuportável, fácil de ser percebido a centenas de metros de distância.

Continua…

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