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Co-Respondentes – Parte X

February 2, 2010

Co-Respondentes

Alguns dias já tinham se passado desde que Carol colocara a última carta no correio. Era um sábado chuvoso e aquelas aulas extras de Clínica Cirúrgica já não estavam se provando tão úteis e interessantes como prometeram no início do semestre. A responsabilidade influenciava muito mais sua presença nas aulas do que o desejo real de estar ali, acordada às 7h da manhã no primeiro dia do fim de semana.

Vindo do centro da cidade, o ônibus de Carol sempre parava do lado oposto ao de sua universidade, forçando-a a esperar a sinaleira fechar para então cruzar as duas pistas separadas por um córrego estreito e uma ponte ainda mais estreita. O ônibus vai vazio, apenas outros dois passageiros. Motorista e cobrador conversam sem muito ânimo. A garota dá sinal que vai descer, já abrindo seu guarda chuva. Não havia trânsito e seu iPod tocava Jorge Ben Jor.


Hugo não se comportava daquela maneira com frequência. Era um rapaz calmo, contido, mas acontecimentos recentes tinham-no colocado fora do eixo. Afinal, quem é que não fica fora do eixo ao encontrar quem ele achava ser o amor de sua vida, na cama, com outra pessoa? Sua reação automática foi entrar de volta no Chevrolet e ir, o mais rápido possível, para o mais longe que pôde pensar. Seu pé era o mesmo que uma pedra sobre o acelerador, seus olhos viam apenas o que se encontrava sobre o asfalto, ignorando completamente tudo que se encontrava fora da pista. O velocímetro parecia querer estourar seu mecanismo e sair rodopiando pelo painel.

“Por que, Marina, por que?” ecoava incessantemente em sua cabeça. Todas as suas brigas repassavam, simultaneamente, na memória, todas as provocações, ciúmes e mal-entendidos. O mundo turbilhava dentro de sua mente e fora do carro, mas no assento do motorista, apenas se ouvia o discreto ronco do motor, lhe dando alguma estabilidade em tão instável condição, criando a ilusão de segurança dentro daquele pequeno espaço fechado, refrigerado e silencioso.

Sobre o painel, seu celular acendera as luzes e começara a tremer, indicando uma chamada. Ao tirar os olhos de suas próprias lembranças e encaminhá-los para a realidade, identificou o número que chamava. Marina. Nesse movimento, identificou também uma garota atravessando o meio da pista, ouvindo distraidamente seu iPod e se protegendo da garoa com seu singelo guarda chuva branco.

A menos de quarenta metros, saindo de uma curva, o bólido Chevrolet preto se aproximava a mais de 120km/h. A primeira reação do rapaz foi de susto e seu reflexo natural foi girar o volante para a esquerda e tirar o pé do acelerador, afundando com tudo no freio, travando as rodas. Em câmera lenta devido à descarga de adrenalina, Hugo viu o rosto surpreso da moça passar à sua direita, quase tocando a janela, ainda teve tempo de olhar para frente, vendo o obstáculo que iria pará-lo.

Pouco mais de um segundo se passou seu retorno à realidade e a colisão violenta com um poste à margem da pista, desviando de Carol por menos de meio metro. O tronco de concreto entrou pela dianteira do veículo quase até o parabrisa, retorcendo metal e estraçalhando peças. As janelas estouraram, lançando cacos dentro do carro e sobre a pista molhada, os faróis quase se encontraram na frente do que costumava ser o capô, também trincados e destruídos.

O corpo de Hugo foi arremessado para frente com brutalidade, segurado apenas pelo cinto de segurança. Sua cabeça atingiu em cheio o volante e sua visão ficou imediatamente turva e esbranquiçada. Ele sente seu coração batendo lentamente – apesar da imensa descarga de adrenalina na corrente sangüínea -, abalado pela pressão do cinto. Seus pulmões lutam, ofegantes para absorver uma nova tragada de vida. Os sons vão ficando cada vez mais distantes e o mundo já parece um lugar bem escuro.

Apesar de atordoada pela passagem do carro tão próximo a ela, Carol rapidamente recobrou a razão, correndo na direção do emaranhado de metais retorcidos e fumegantes. O guarda-chuva abandonado no meio da pista, o telefone numa das mãos, discando automaticamente o número da Emergência. Não há sinais de fogo ou cheiro de combustível, que são dois grandes riscos em acidentes de carro – “Viva o curso de primeiros socorros que fiz nas férias do segundo semestre”, ela agradecia inconscientemente.

Se aproximando pelo lado do motorista, conseguiu abrir, a chutes e puxões, a porta empenada. A cabeça do rapaz estava coberta de sangue, e suas roupas já estavam empapadas com o líquido vermelho. Às pressas e sem nenhuma delicadeza, ela o livrou do cinto de segurança que comprimia o corpo inerte, colocando-o no chão forrado de pequenos cacos de vidro temperado. Carol se debruça sobre ele, procurando seu pulso e respiração, ambos em péssimas condições. Hugo vê uma silhueta bloquear a pouca luz que ainda enxergava.

Ela tapa o nariz do rapaz, cobrindo a boca dele com a sua e lançando ar para dentro de seus pulmões. Depois de duas tentativas, ela checa seu pulso e sente o pior se avizinhando. O coração dele parara de bater. Não muito ao longe, nos portões da Universidade, começam a aglomerar-se pessoas, umas assistindo, horrorizadas, outras mais ativas, já correndo também em direção ao carro, com materiais médicos em mãos. A segunda a chegar, poucos minutos depois de Carol – minutos esses que pareceram uma eternidade – foi Rafael, professor de Anatomia Humana Básica, matéria do primeiro semestre. O volume da sirene da ambulância também se aproximava com velocidade crescente, indicando a chegada do resgate.

Rafael assume a dianteira e começa a fazer uma massagem cardíaca no corpo estendido sobre a calçada enquanto Carol não consegue pensar em mais nada além de “eu deixei este homem morrer”. Assim que a ambulância pára, bruscamente, descem dois paramédicos já com uma maca. Rafael grita as ordens dos procedimentos enquanto a frase não sai da cabeça da garota, que não acompanha a cena que se desenrola diante de seus olhos. Ela só retorna a si mesma quando o professor segura firme em seu ombro e, com a mão coberta de sangue, indica que ela acompanhe o resgate até o hospital.

Enquanto rumava para a ambulância, Carol vê, alguns metros adiante no asfalto, projetado pelo parabrisa e em meio a centenas de milhares de cacos de vidro, o celular do rapaz aparentemente intacto. Ela pega o pequeno aparelho eletrônico, colocando no bolso do jaleco ensangüentado e entrando no veículo. Durante o percurso, ela não diz uma palavra, apesar de apertar incessantemente a mão daquele possível cadáver que jaz na maca já não mais tão alva como antes.

Os paramédicos, horas depois, já no hospital, dizem que as ações de Carol tiveram grande importância no salvamento da vida daquele rapaz.

Aquele telefonema acordou Hugo para o mundo ao seu redor enquanto seguia acelerado, imerso em pensamentos. De certa forma, pode-se dizer que Marina salvou a vida de Carol, que por sua vez salvou a vida de Hugo, tomando as providências necessárias sem pensar nem meia vez.

“Eu salvei a vida dessa pessoa”.

  • Vick February 3, 2010 at 4:38 pm

    Acho bom essa broder não se apaixonar por esse Hugo.
    HUNF!

  • Mila February 4, 2010 at 4:42 pm

    Vick disse, e eu assino em baixo!
    HUNF!