Day-to-Day

Disrupting Shooters.

June 21, 2014

Nessa semana tirei algumas horinhas para experimentar um jogo novo (não tão novo), Mirror’s Edge, que me lembrou bastante Portal, que também não é novo. Fiquei querendo traçar um paralelo entre eles, então aqui vamos nós.

Portal foi lançado em 2007, pela Valve (mesma desenvolvedora de Half Life), e foi derivado de Narbacular Drop, um trabalho de conclusão de curso de um grupo de alunos do DigiPen Institute of Technology. A grande maioria da equipe de Narbacular Drop foi contratada pela Valve para trabalhar em Portal. O jogo se passa num futuro desconhecido e é baseado numa série de puzzles, quebra-cabeças práticos, que você deve resolver utilizando uma única arma, capaz de abrir portais interconectados. Você abre um portal numa parede, outro em outra, do outro lado da sala, e consegue atravessar contornando as leis da física.

A protagonista de portal é uma mulher chamada Chell, e a vilã é GLaDOS, uma ‘mãe’ sistema operacional devotado a elaborar os enigmas e avaliar a performance da garota. Não há outros personagens ao longo do primeiro jogo. Só elas duas. Os cenários são todos muito brancos, clínicos, permeados apenas pelo azul e laranja dos portais, no subsolo de um lugar desconhecido. Não vou entrar em detalhes da história, porque é bem peculiar, e a interpretação de Ellen McLain para a vilã tem tantas piadas incríveis que no fim do jogo todo mundo lembra de pelo menos uma citação. O grande problema é que o jogo é muito curtinho, mas foi um sucesso de vendas e downloads, que levou ao lançamento de Portal 2, em 2011.


Chell, protagonista de Portal

Portal 2 tem tudo que o primeiro jogo tinha de bom, e muitas coisas aprimoradas. É um jogo beeem mais longo, com muito mais história, e enigmas muito mais elaborados, sempre girando em torno dessa capacidade de atravessar paredes como mágica. Jogamos novamente com Chell, apesar de agora termos certeza que a garota é um clone, e que aquela situação tem se repetido ad infinitum. O visual tem muito branco também, e as cores principais são laranja e azul (dos portais de entrada e saída), e vermelho, dos lasers inimigos. Agora muitos enigmas também exigem agilidade nos movimentos e pensamento rápido para improvisação. Apesar disso, ainda é bem difícil fazer o personagem morrer durante a resolução dos enigmas.

Novamente, as falas são incríveis, e somos apresentados a mais personagens, assim como todo o passado por trás da Aperture Science, GLaDOS, e mais. A Valve investiu pesado nesse campo, e a história é bastante imersiva. O grande diferencial da série é que apesar de ser tudo em primeira pessoa, você não mata ninguém no processo, e sua única “arma” é a dos portais. Também não temos uma ambientação “macho”, adrenalina bombando, essas coisas. É um jogo muito inteligente, sem ser arrogante, e que inova na jogabilidade com essa mecânica dos portais (depois de algumas horas de jogo, você começa a pensar onde colocaria portais na vida real, pra se deslocar mais eficientemente), sustentada principalmente pelo princípio de momentum (da física), onde você, por exemplo, ganha velocidade depois de cair por um poço, entrar num portal, sair no teto logo acima do poço, entrar de novo pelo chão e nessa segunda queda, mudar o portal de saída, pra entrar mais uma vez pelo chão, e ser lançado a toda velocidade por uma parede, chegando até o seu objetivo.

O trailer de Portal 2 tá aqui:

Achei um texto genial, explicando porque Portal é o jogo mais subversivo de todos os tempos, baseado numa perspectiva de gênero, e se vocês tiverem coragem e paciência (nem é tão longo, e os argumentos são excelentes), tá aqui o link.

Mirror’s Edge, por sua vez, foi lançado entre os dois jogos, em 2009, pela DICE (mesma desenvolvedora de Battlefield), aproveitando o boom que o movimento do Parkour (ou free-running) teve no fim da década de 2000. A protagonista é Faith, uma mulher que vive à margem da sociedade, transportando mensagens e entregas secretas, deslocando-se pelos telhados da cidade, usando o ambiente ao seu favor, e sempre driblando a polícia.


Faith, de Mirror’s Edge

O jogo também tem a mesma estética de MUITO branco, com algumas coisas de cores bem fortes (azul, verde, laranja e uns poucos – e especiais – elementos em vermelho). Novamente, você não tem uma arma, apesar de o jogo ser em primeira pessoa, e a maior parte do tempo é mais interessante evitar o conflito com as hordas de policiais que te perseguem. A forma de ataque de Faith são alguns golpes de artes marciais, e principalmente, desarmar seus adversários. Essa é a única oportunidade de dar uns tiros no jogo: quando você pega a arma de um oponente. Mas aí, dá pra atirar até acabar as balas, e fim, sem falar que não dá pra subir paredes, pular e correr empunhando uma arma (eu tentei). Fora isso, existe um incentivo para não utilizá-las, um desafio proposto pelo jogo, para completá-lo 100%, que é completar a campanha sem disparar uma única bala.

Eu juro que tentei, mas é MUITO difícil. Na verdade, o conceito de Mirror’s Edge é tão diferente do que estava acostumado, que morria trocentas vezes no mesmo pedaço – ou porque os policiais me metralhavam, ou porque não conseguia pular para o prédio certo, ou porque errava o caminho, e tudo é decidido na hora, então não dava pra mudar, enfim. Nesse aspecto, ele peca, porque até você se acostumar, é normal ficar um bom tempo emperrado numa fase. A vantagem é que, depois que você acostuma com o que é possível fazer, e o tempo de executar cada movimento, é assustador como o cérebro funciona rápido, traçando caminhos sem você nem precisar parar pra olhar o ambiente, e desarmando oponentes sem ativar a câmera lenta (que é absolutamente fundamental no começo).

A trama é uma coisa meio conspiratória, governo, complô contra os Runners (que são esses, que vivem à margem da sociedade, “at the Mirror’s Edge”), complô contra a irmã da protagonista, nada muito sofisticado. É intrincada, mas não elaborada, infelizmente. As missões são curtas, e o jogo todo dura menos de cinco horas. Tem muuuuitas animações e cutscenes, que não são de todo mal, mas quebram um pouco do ritmo da correria louca em primeira pessoa.

Também é um jogo disruptivo, no conceito de FPS (First Person Shooter) porque não é um shooter em si, e sim algo que aproveita o conceito já estabelecido, os controles, a familiaridade, para inovar na jogabilidade, no visual, na protagonista, e no mata-mata tradicional.

A continuação do jogo foi anunciada na E3 desse ano (algumas semanas atrás), e o trailer também tá aqui embaixo. É um ABSURDO visual, mas não dava pra esperar menos da galera que faz Battlefield. Parece que tá acontecendo o mesmo que rolou com Portal: o primeiro jogo é pra testar o mercado, ver se tem receptividade, e o segundo é que chuta o pau da barraca de verdade.

Agora, vamos traçar alguns paralelos, pra acabar esse post louco.

Ambos os jogos se baseiam no conceito de FPS – a câmera em primeira pessoa, os controles -, os dois têm cenários muito brancos e bem iluminados, com alguns poucos elementos bastante saturados. Dá pra contar a paleta de cores do jogo todo nos dedos de uma mão. Tanto Portal como Mirror’s Edge têm seus fundamentos em “como você se desloca, e que caminho você faz”, combinado com escolhas rápidas nesse trajeto, sempre com objetivo de chegar de um ponto A a um ponto B (literalmente, o percurso é o jogo, não como um shooter comum, onde o percurso é o plano de fundo que acaba crivado de balas), apoiando-se fortemente em momentum (seja para os pulos e acrobacias de Faith, seja para impulso, impacto ou proteção para Chell). Os dois jogos são curtos e atrairam os olhos do grande público, apesar de suas propostas incomuns.

Existem dois pontos em comum, porém, que, pra mim, são os mais importantes: Portal e Mirror’s Edge tem protagonistas femininas fortes, independentes de personagens masculinos (Faith tem Merc, mas eles são amigos, e Merc fala com ela pelo rádio o tempo todo, não é um cenário romântico), não um estereótipo, mas bem reais. A trama não exige que o protagonista seja uma mulher, e isso é a característica mais forte. Citando Jen Bosier, “Rather than being a hot chick who goes on whirlwind adventures, she is instead an unwitting hero, thrust into an adventure, who just happens to be female”.

E são jogos totalmente originais, em termos de “mecânica”. Não tem nada no mercado que seja levemente parecido com eles, o que os transforma de “uma experiência incrível” em “uma experiência única”, no melhor sentido das palavras. Se tivermos um ou dois jogos por ano que sigam essa originalidade, o mundo dos jogos já vai ficar bem mais interessante. E, por favor, muito mais do que um ou dois jogos por ano com protagonistas femininas plausíveis, pra melhorar não só o mundo dos jogos, como o mundo real também. Chega de clichês e princesas em apuros.

PS – Acabei de descobrir que a roteirista de Mirror’s Edge também co-escreveu o Tomb Raider lançado no ano passado, um reboot da série, e reset dos clichês “Lara Croft”, que me motivou bastante a escrever esse post. Tenho que ficar de olho nessa moça, Rhianna Pratchett.