FILMES: O Falcão Maltês (1941) e A Marca da Maldade (1958).
“Sim, claro, aqueles policiais dos anos 1940 de luz expressionista, narrados em off, com uma loira fatal e um detetive durão ou um trouxa, cheios de violência e erotismo etc.” (MASCARELLO, 2006, p. 178)
“O noir como gênero é em certo sentido uma fantasia: um objeto nunca dado em sua forma pura ou completa” (Elizabeth Cowie). Essa afirmação é perfeitamente verdadeira quando levamos em caso uma análisa sobre O Falcão Maltês (1941). Dirigido por John Huston, o filme tem muitos elementos do estilo noir, mas não possui todos, coisa que é, também, uma característica do gênero.
Na intrincada história envolvendo Sam Spade (Humphrey Bogart), Brigid O’Shaughnessy (Mary Astor), Joel Cairo, Kasper Gutman, Wilmer Cook, temos um grande mistério como fio condutor. Temos assassinatos, mas eles não são o ponto principal da trama. Uma estatueta valiosíssima, desaparecida, é o ponto que une todos esses personagens.
Nos primeiros minutos somos apresentados ao detetive Spade, sua assistente Effie e uma “Srta. Wonderly” – a femme fatale da obra, mentindo e enganando até o último minuto -, que posteriormente se revela Brigid O’Shaughnessy, que fala sobre uma irmã desaparecida, e suas suspeitas em relação a um Sr. Thursby. Miles, parceiro de Sam, se oferece para seguir o suspeito à noite, e acaba sendo assassinado. A situação se complica quando, horas mais tarde, Thursby também é assassinado. As suspeitas recaem sobre Sam, que passa o filme todo despistando os policiais, para continuar investigando o caso.
Deste ponto em diante, ele vai descobrindo, muito lentamente, o motivo por trás dos crimes, a história dos envolvidos, e a grande cobiça atiçada pelo tal Falcão Maltês – desaparecido em 1539, e que reaparece ao longo da história, em diferentes pontos do globo – peça de valor inestimável, supostamente em posse de um dos conspiradores.
Testemunhamos o envolvimento do detetive com Iva, viúva de seu parceiro morto e com Brigid enquanto ele se desloca por San Francisco – são pouquíssimas as cenas em áreas abertas, a maioria delas se passa dentro de quartos de hotel, casa e escritório de Sam, apartamento de Brigid e lobby do hotel onde Gutman se hospeda, o que é uma característica do estilo noir -, encontrando sucessivamente os envolvidos no mistério. Os três conspiradores (O’Shaughnessy, Cairo e Gutman) não são vistos juntos até a última seqüência, e os diálogos ao longo do filme indicam claramente que eles não confiam uns nos outros.
Mantendo os costumes, O Falcão Maltês só termina de se desdobrar e revelar quando faltam menos de quinze minutos para o fim do filme, quando temos a explicação da seqüência de golpes dos conspiradores, e, ainda depois, em particular, a confissão do plano original da Srta. O’Shaughnessy, que implica no envolvimento inicial do detetive Spade.
Os pontos que distoam da caracterização do gênero são a ausência da voz de Spade como uma narração em over, e a inexistência de flashbacks ao longo da história. Tudo é contado cronologicamente, sempre do ponto de vista de Spade – o que é, de certa forma, uma substituição à voz over.
Agora, analisando A Marca da Maldade (1958), de Orson Welles, temos um pouco mais de dificuldade em afirmar que se trata de um film noir. A grande maioria das características está ausente, mas ainda temos uma trama muito violenta, detetives, um assassinato como ponto de partida – que fica sem resposta até o último minuto –, ruas escuras e desertas, e uma fotografia incrivelmente expressionista, com jogos de luz e sombra capazes de contar uma história por si só.
O primeiro plano – que é um fabuloso plano seqüência – começa num detalhe de explosivos sendo armados, depois abre para um ambiente externo onde vemos um casal andando despreocupadamente. A câmera acompanha a corrida do rapaz que carrega os explosivos, vemos sua sombra correndo no muro, e ele os esconde no fundo de um carro, fugindo em seguida. Daí pra frente, seguimos o carro em sua difícil trajetória nas ruas de uma cidadezinha na fronteira entre EUA e México. Por muitos momentos perdemos o carro de vista e o foco se deposita sobre um outro casal que anda na mesma direção.
Em pouco tempo descobriremos que o casal pedestre é composto pelo detetive Miguel Vargas e sua esposa Susie. Vemos os dois casais ficarem emparelhados na hora de cruzar a fronteira, quando a acompanhante de Linnekar comenta um “tic-tac em sua cabeça”, mas ninguém lhe dá ouvidos. No carro, o ponto de partida para a trama, Linnekar, político importante, é morto com a dinamite em seu porta-malas, depois de cruzar a fronteira americana. Tudo isso num único plano.
O filme se encaixa na descrição das novelas hard-boiled, feita por Mascarello, “obras de tons escurecidos, temática e fotograficamente, surpreendentes em sua representação crítica e fatalista da sociedade americana e na subversão à unidade e estabilidade típicas do classicismo de Hollywood”. Assim que o carro explode, do lado americano, temos uma grande confusão e logo chega o detetive Quinlan, representante supremo da decadência da sociedade, extremamente violento e arrogante, mas com uma intuição infalível.
“Já o herói (ou anti-herói) noir, mesmo no caso do detetive durão, constitui uma inversão desse ego ideal, por suas notórias características de ambigüidade, derrotismo, isolamento e egocentrismo.” (MASCARELLO, 2006, p. 183)
Também não temos voz over ou flashbacks em A Marca da Maldade, nem a figura da femme fatale – o que mais se aproxima desse elemento é Tanya, mas sua participação na trama é irrelevante –, afinal a esposa de Vargas é uma das vítimas da conspiração. Mas os enquadramentos seguem fielmente a tendência noir – big close-up para plano geral em plongée. Quase todos os planos próximos, especialmente os de Quinlan, são feitos com lentes grande-angulares, deformando o rosto do homem e tornando-o ainda mais estranho aos olhos do espectador.
A história, menos intrincada que de O Falcão Maltês, se desdobra nos ataques sucessivos de Vargas a Quinlan, e contra-ataques do detetive americano. Temos o mexicano –Vargas – agindo de forma clara e limpa diante da câmera o tempo todo, e Quinlan, que se esconde nas sombras, associa-se aos bandidos (“Tio” Joe Grandi), usa de violência e faz ameaças a todo o tempo. É impossível não torcer pela vitória de Vargas.
Desde o princípio, os dois detetives trocam farpas, mas a coisa se complica mesmo quando Quinlan forja provas na casa de Sanchez (um rapaz mexicano casado com a filha de Linnekar) para acusá-lo do assassinato inicial. A partir daí, Vargas passa a se dedicar exclusivamente a provar que Quinlan sempre planta provas em suas investigações, e Quinlan se dedica à derrubar o mexicano de seu altar de pureza e inocência.
A esposa de Vargas é logo tirada da companhia de seu marido e manipulada, sequenciadamente, até o fim do filme, quando ela é presa pela polícia de costumes, por supostamente promover orgias e consumir drogas. Toda essa ação tem supervisão de Joe Grandi e, ao fim, do próprio Quinlan, tentando sujar o nome de Vargas.
Ao final da trama, com a morte de Quinlan, depois de um longo diálogo entre ele e seu melhor amigo (Sargento Peter Menzies) – aliado de Vargas ao fim da trama –, onde o detetive americano perde o controle psicológico, atira em seu amigo com a arma de Vargas e tenta enquadrá-lo pelo tiro, mas por fim é abatido pelo próprio Pete, moribundo, vemos o último diálogo da obra, entre Tanya e Al Shwartz – aliado de Vargas desde suas desconfianças iniciais – as , onde se comprova a culpa de Sanchez no assassinato de Linnekar, confirmando a intuição de Quinlan. Ou seja, ele podia ser terrível, e até chegar ao ponto de forjar evidências (ele não confessa isso na conversa com Pete), mas não errava quando acusava alguém.
Da estética noir, temos muitas cenas em ruas desertas. Muito mais externas que no Falcão Maltês, sempre à noite, sempre ameaçadoras. A fotografia é mais expressionista também – e low-key, com acentuação da escuridão –, se fazendo perceptível como elemento da história e o tom da obra – tanto na trama como na imagem – é muito mais sombrio que o do outro filme analisado, mas ainda assim foi necessário algum tempo de consideração para encaixá-lo no “estilo” noir, justamente por tantas características ausentes.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
MASCARELLO, Fernando. História do Cinema Mundial. Campinas, SP: Editora Papirus. 2006.
COWIE, Elizabeth. Shades of Noir: A Reader – “Film Noir and Women”. USA: Verso Publisher. 1993