Day-to-Day

O Suspense Através da Decupagem.

November 9, 2010

SÉRIE: Alfred Hitchcock Presents.
EPISÓDIOS ESCOLHIDOS: Back For Christmas, One More Mile To Go, The Perfect Crime e Lamb To The Slaughter.

“Hitchcock vai contando o drama através de uma câmera ostensivamente voyeurista, aumentando a ansiedade do espectador e criando desconforto com o próprio ato de olhar, sentido essencial à natureza do cinema. Ainda assim, podemos distuinguir entre o que chamaríamos de um suspense do medo, representado, por exemplo, pelos filmes de Griffith aqui analisados – calcados numa estrutura de montagem paralela, montagem alternada, do movimento físico da corrida contra o tempo – e o suspense psicológico que, como em Hitchcock, se apóia também no olhar, e onde imperam o insólito, o inesperado, o choque dentro do cotidiano”. (VIEIRA, 2007, p. 249)

A série Alfred Hitchcock Presents foi uma das pioneiras no gênero suspense. Iniciada em 1955, perdurou até 1965, sendo que todos os episódios contavam com uma breve introdução e conclusão apresentadas pelo próprio Hitchcock. Em cada episódio era mostrada uma situação diferente, com personagens diferentes – nunca eram usados os mesmos personagens -, cujo único ponto em comum era o suspense. Pode-se dizer que Hitchcock tinha o dom do suspense, e não era um dom mágico. Ele sabia perfeitamente o que fazer, ou ainda melhor: sabia perfeitamente o que mostrar para criar o suspense no espectador, e isso pode ser comprovado com uma análise dos episódios da série.

“Oudart afirma que a imagética fílmica é paradigmaticamente atribuída à autoridade do olhar do ausente, o personagem fora-de-campo (mas dentro da história), que no contracampo é representado no interior do quadro; o espectador identifica-se’ com o campo visual do ‘dono’ do olhar”. (BROWNE, 2004, p. 230)

Essa é uma das grandes técnicas utilizada por Hitchcock para a criação do suspense. Em Back For Christmas, essa situação é notável logo no começo, quando temos o homem medindo o buraco escavado, e em seguida, temos um plano que começa quase mostrando seus pés, percorrendo toda a parte escavada, e lentamente subindo até a cabeça de sua esposa, como que checando se ela vai caber ali dentro. Ainda não sabemos nada sobre os personagens, mas exclusivamente por conta desse plano, já temos certeza das intenções do marido. Apenas para confirmar essa impressão, temos seu contracampo, olhando a mulher sem prestar atenção em suas palavras.

A situação se repete em One More Mile To Go, quando o homem anda de carro, à noite, já com a esposa no porta-malas. Temos um plano do velocímetro, então sabemos que ele está atento para não chamar atenção, e assim que as luzes da motociclete do policial se acendem atrás dele, passamos para um plano detalhe do retrovisor, onde o policial se aproxima, mandando-o encostar. Assim que a figura da lei é confirmada, no retrovisor, já surge a tensão, pois sabemos da culpa do personagem. “De acordo com Jean Delumeau, no sentido estrito do termo, o medo é uma dessas emoções-choque, frequentemente precedida de surpresa, provocada pela tomada de consciência de um perigo presente e urgente que ameaça, cremos nós, nossa sobrevivência física” (João Luiz Vieira) “O que esse policial procura?”, “será que o corpo vai ser encontrado?”.

Mais à frente, já no posto de gasolina, enquanto o policial força a lâmpada traseira do carro, temos mais planos do porta-malas fechado, de uma perspectiva que só pode ser a do culpado, e fica cada vez mais forte o suspense acerca do que vem a seguir. O policial está determinado a abrir o porta-malas. Por fim, quando já nos aproximamos do final do episódio, que ele deixa o policial no posto e retoma seu caminho, temos muitos planos do retrovisor, e a cada novo plano, ficamos alertas, procurando o policial junto com o personagem principal.

Outra grande técnica do diretor é a subjetivação da câmera, quando ao invés de vermos o que o personagem vê, vemos sua reação diante do que está acontecendo na situação. Esse tipo de plano é bastante claro em todos os episódios, pois é nele que percebemos o que se passa nos pensamentos dos personagens. Em The Perfect Crime, por exemplo, em grande parte das vezes que o advogado fala, enquanto ambos estão sentados na sala, não temos seu rosto em quadro, e sim o promotor, e acompanhamos suas reações, já imaginando o que ele fará a seguir. O olhar do culpado é que aviva ainda mais o suspense.

Lamb To The Slaughter também utiliza bastante essa técnica, e durante a maior parte do episódio, enquanto o marido afirma que não vai mudar de idéia, temos o rosto decidido da assassina. Depois, estamos vendo o rosto da pobre esposa, que fica preocupada a cada avanço dos detetives, ouve as conversas sobre o crime, faz cara de inocente quando lhe dirigem o olhar, e por fim, encerra o capítulo com um sorriso no rosto, sabendo que nunca será pega.

“Há um aspecto que a entrevista explica bem: a diferença entre ‘suspense’ (a expectativa diante do desdobramento de uma situação de risco da qual o espectador possui todos os dados e, por isso mesmo, tem o que temer) e ‘surpresa’ (a violência inesperada, instância do choque)” afirma Ismail Xavier no prefácio de Hitchcock Truffaut: entrevistas, e de fato, esses são dois aspectos muito importantes de serem diferenciados. Em todos os episódios temos os dois sentimentos, e sempre um vem em função do outro.

Em Back For Christmas, o suspense existe porque sabemos que o homem quer matar sua esposa, a surpresa decorrente disso, é o assassinato, numa cena de grande tensão, quando vemos ele posicionar a barra de ferro na bancada atrás de si, dentro do porão, e chamar a mulher até lá, pois quer lhe mostrar algo. Então, ela pede a ajuda dele para trocar alguns panos na mobília. O suspense se prolonga, adia. Por fim, ele corre novamente para baixo, e a chama. Agora já temos certeza que a morte é inevitável, e a câmera se coloca atrás dele, onde podemos ver o movimento de suas mãos com a barra de ferro, sem que a esposa veja.

One More Mile To Go já funciona inversamente. Primeiro a surpresa, quando o homem mata a garota, e depois todo o suspense se constrói exatamente porque sabemos que o corpo está no porta-malas, e o policial insiste em abri-lo para consertar a lâmpada. No momento que eles estão no posto, o policial diz que é só abrir o porta-malas e arrumar os fios. O homem vai até a ignição, tira a chave e a esconde. Diz que esqueceu a chave do porta-malas em casa, o oficial então pede um pé de cabra para forçar a fechadura. Quando já temos certeza que ele vai conseguir abrir o carro, a luz miraculosamente volta a funcionar e todos suspiramos aliviados, para retomarmos a tensão mais adiante.

No começo de Lamb To The Slaughter temos a surpresa do assassinato do marido. Então a esposa disfarça o ambiente, sai, e por fim chama a polícia. Ela pensou friamente em tudo para construir sua inocência, apesar de ter cometido o crime num lampejo de fúria. O episódio todo alternamos entre as conversas dos detetives, sempre no caminho certo do crime, e a expressão da moça, ainda incerta se vai ser descoberta ou não. O suspense vai se dando justamente por conta de os detetives caminharem sempre na direção certa para desvendar o crime – o espectador viu o crime, e sabe cada detalhe dele e, principalmente, quem é a culpada -, e a garota sempre fazendo-se de inocente. O auge é quando eles encontram o assado no forno e fazem comentários sobre o tamanho do mesmo.

The Perfect Crime é o episódio mais diferente dos quatro analisados, e o suspense vai sendo criado a partir da chegada do advogado, que acusa o promotor de ter enviado para a morte um homem inocente. Então, as coisas vão ficando mais angustiantes conforme o advogado vai fazendo releituras das provas apresentadas para culpar o réu, uma a uma, e mostrando que de fato o promotor fez com que a pessoa errada fosse condenada. A surpresa então vem quando o promotor ataca o advogado, matando-o. É seu olhar que indica o que aconteceu com as provas do assassinato que ele cometeu.

“Mas, de seu lado, o público já recebeu a informação. Portanto, criamos um suspense baseado nessa interrogação: como James Stewart reagirá quando descobrir que ela mentiu e que é de fato Madeleine?”. Sem maiores problemas, podemos substituir os nomes dos atores e personagens na colocação de Truffaut, e até mesmo alterar a situação de surpresa (a descoberta). Alternando o ponto de vista do culpado, a subjetivação da câmera e o conhecimento do espectador sobre as circunstâncias não estão a mostra para os outros personagens, Hitchcock constrói seu suspense psicológico com habilidade.

Um ponto não relacionado ao suspense em si, mas que é digno de nota sobre a série é que a conclusão dos episódios, muitas das vezes, servia apenas para contar como o culpado tinha sido descoberto e punido por seus crimes, ainda que tivesse escapado ileso daquele capítulo. Como o próprio Hitchcock disse em entrevistas, era um reforço necessário à moralidade.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BROWNE, Nick. O espectador-no-texto: a retórica de No Tempo das Diligências. In: RAMOS, Fernão (org.) Teoria contemporânea do Cinema. Volume II Documentário e narratividade ficcional. São Paulo, Ed. Senac, 2004.

TRUFFAUT, François. Hitchcock Truffaut: entrevistas. 2ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1986.

VIEIRA, João Luiz. A construção do medo no cinema. In: NOVAES, Adauto (org.) Ensaios Sobre o Medo. São Paulo, Ed. Senac, 2007.