Day-to-Day

Sem Saída.

June 9, 2015

Essa história é inspirada em fatos reais. Pra ser preciso, é baseada em acontecimentos de ontem.

Era uma segunda feira normal de inverno na Rua das Calopsitas, número 79. O Sol estava estranhamente brilhante durante a manhã, mas não era lá surpreendente para padrões soteropolitanos. Já era perto meio dia quando Madalena se convenceu que era uma boa idéia sair da cama e se arrastar até a cozinha para ver que tipo de comida encontrava por lá, se seus filhos tinham deixado algo do café da manhã ou se era melhor começar a pensar em almoço.

Com o que para ela parecia o maior esforço do mundo levantou as pálpebras e abriu seus cativantes olhos verdes. Dizem que olhos verdes são um defeito genético. É bem provável que seja mesmo, uma vez que nenhum de seus filhos herdou o traço. “Foi azar”, ela responde quando alguém comenta sobre o assunto. Voltando aos olhos, parecem duas esmeraldas, grandes, enormes, na verdade. Puras e perfeitamente redondas. Dando alguns passos, Mada – sua mãe a chama por esse apelido – pára em frente ao espelho e repara como aquele pijama nunca fica velho. Seus cabelos grisalhos indicam que ela não é tão jovem quanto gostaria.

Mada boceja e se espreguiça longamente. Se não tiver café da manhã posto, é bom que o tempo de se espreguiçar já diminui a distância até o almoço. No caminho para a cozinha, passa por Lola na escada. Sua filha mais nova, herdou o cabelo macio e o mau humor. Talvez até um pouco demais do mau humor. Lola grunhe alguma coisa incompreensível conforme cruza com sua mãe. Na cozinha, Mada vê apenas alguns farelos de comida. “Eu devia esperar até o almoço”, ela pensa, sentindo suas gordurinhas balançarem de leve enquanto anda. Seu estomago ronca em resposta. A cozinha está em polvorosa, com pessoas indo de um lado para o outro preparando almoço, café e arrumando a casa. “Alguém aqui vai ter que me ajudar”. Mada é arrogante de vez em quando, mas não é totalmente incompreensível. Ela também tem seus momentos de muito carinho.

Levantando a cabeça, Mada lança um longo miado. Ah, é… Não falei desse detalhe: Madalena é uma gata. SRD – Sem Raça Definida, popularmente conhecida como “Vira Lata” -, doze anos de idade e duas ninhadas de filhotes. Seu filho mais velho, Hakuna, já faleceu. Foi cedo. Nino e Lola ainda vivem por perto. Além deles, Mada divide a casa com Kiko – o mais velho -, Kenzo – o sem teto -, e Piatã – o filhote sem noção. Nenhum deles particularmente importante nos eventos de hoje, mas bastante relevantes na história de Madalena.

Não muito depois desse episódio do almoço, o tempo mudou, e a chuva começou. Mada e seus colegas felinos vivem dentro de casa. Experiências anteriores com resultados terríveis (envolvendo arame farpado, cobras, veneno, sustos, fugas e desaparecimentos prolongados) selaram esse destino para eles. Não que eles se incomodem muito, desde que possam passear um pouquinho de vez em quando, acompanhados por um adulto. Mada tradicionalmente gosta de dar uma volta ao redor da casa, comer bastante grama no trajeto – de diferentes partes do quintal – e um pouquinho de capim santo para refrescar o paladar antes de entrar de volta pela porta da cozinha. Comportada, não precisa de coleira, não corre e não foge, fica sempre por perto dos pés que a acompanham.

Era segunda feira, e agora, com chuva. Todo mundo trabalhando e ninguém para passear. O dia pareceu uma eternidade. “Vocês acham que é fácil conseguir inspiração pra dormir o tanto que a gente dorme? Tem uma hora que não tem mais o que sonhar, colegas!”. A técnica de Madalena pra resolver essa questão é variar as camas. Primeiro perto da mesa, depois no sofá, depois em cima de alguns colchões e intercalar cada etapa com uma excursão ao pote de ração e discussões acaloradas com os outros moradores da casa se eles ficarem no caminho.

O Sol parece que se põe mais cedo nesses dias de chuva ininterrupta, mas as horas definitivamente não passam mais rápido. Lá pelas oito da noite, depois de seis sonecas, depois de ficar assistindo a chuva lá fora, depois de receber dengo de sua mãe, depois de cheirar tudo que estava em cima da mesa, depois de beber água em todos os potinhos espalhados pela casa e mais um tanto de água de chuva, só pra comparar se era diferente, Madalena estava entediada. Subia as escadas depois de seu terceiro jantar, em direção à sala onde seus pais humanos jantavam. Ganhou uns cafunés e por fim se aninhou, sob a proteção da mesa, em cima de uma das cadeiras vazias para ficar assistindo a chuva mais um pouco.

Lola passeava ao redor da mesa, fazendo um escarcéu, pedindo para sair, miando alucinadamente e furando as pessoas com suas garrinhas amoladas. Lola não gosta de ser contrariada, e é preciso muito pouco – quase nada – para contrariá-la. A vantagem desse escândalo perto da mesa é que geralmente funciona, um dos adultos termina de comer, se levanta e abre uma das portas de vidro ao lado, liberando a saída e acompanhando o passeio. Mada queria passear também, mas a disposição para aquele esforço todo minguava a cada gota d’água que batia no vidro. Aí ela viu um vagalume. Ela não sabia o nome “vagalume”, para ela era uma luzinha piscando no ar, lá fora.

Enquanto isso os humanos terminam de tirar a mesa do jantar e se preparam para ir dormir. Apagam a luz da sala e isso desencadeia um estalo muito mais alto que o usual.

Se você já conviveu com gatos, sabe como o bicho fica quando alguma coisa pega sua atenção. Pois bem, Mada estava completamente hipnotizada. Ela sentia seu corpo deitado confortavelmente na cadeira, mas só ouvia o bater das asas do inseto. Sua visão era apenas aquela coisa piscando no ar, a chuva era só um pano de fundo pra tudo. Suas pupilas dilatadas pelo instinto de caça, os bigodes praticamente sentiam cada gota que passava ao seu redor. O tempo se dilata. Lá fora, na grama verdinha e macia que ela não sentiu hoje, no ar com cheiro de mato que não chega dentro de casa, nos vários tipos de chão que passam debaixo de suas patas, tão diferentes do chão de pedra lisa do lado de dentro, do horizonte distante e colorido ao invés dos rodapés bege e paredes brancas…

Madalena subitamente se vê do lado de fora da casa, pulando em direção à presa e acertando o alvo com a suas patas. “Peguei!” ela comemora por uma fração de segundo antes de aterrisar no chão de pedra molhada. A chuva cai sem piedade. “Como eu vim parar aqui?!”. Mada se vira para a porta de vidro e ela está fechada. Maçaneta fora de alcance. “Será que eu…”, mas seus pensamentos não conseguem se organizar com toda essa água caindo do céu. Suas vontades entram em conflito, sair de casa e passear versus estar do lado de dentro, protegida da chuva. O temor de água vence e ela dispara de volta em direção à porta de vidro, miando desesperada por socorro.

“Alguém me resgata, gente! Eu não quero estar aqui fora agora! Me ajuda!”

Para sua sorte, os humanos também acharam aquele estalo estranho e foram investigar se alguma coisa tinha caído, quebrado, batido ou se algum outro gato estava aprontando arte. Qual não foi a surpresa ao verem Madalena do lado de fora, com seus olhos verdes esbugalhados, chorando para entrar em casa?

“Mas Mada, como você chegou aí fora?” – Perguntaram em voz alta enquanto abriam a porta de vidro.

“Nem se você entendesse o que eu falo, eu ia saber explicar!”, ela mia em revolta, tentando colocar as patinhas no chão e se sacodir pra secar aquele aguaceiro todo.

A partir de então, por motivos de falta de explicação racional, as portas de vidro passaram a ser trancadas. A única justificativa plausível para os humanos é de que a gata virou a maçaneta sozinha, saiu e a porta se fechou atrás dela. Mada sabe que não foi bem assim. Ela não sabe como foi, mas sabe que não foi assim. O frio da chuva começa a espairecer, e depois de um bom banho de língua, a melhor saída é voltar a dormir, porque essa história toda de teletransporte é muito cansativa e ela precisa dormir bem pra pensar no assunto no dia seguinte. “Quantas possibilidades!”