Browsing Category:

Day-to-Day

Day-to-Day

Palavras, Me Levem Para Bem Longe.

June 28, 2015

Eu sempre gostei de ler. Diz minha mãe que eu aprendi a ler antes do normal, mas o que isso implica? Saber ler não significa gostar de ler. Na verdade, tem muita coisa que eu não consigo avançar – os textos de audiovisual que o digam. Acho que acabei exagerando na minhha afirmação inicial. Eu gosto mesmo é de ficção. Quando era criança, li todos os Harry Potter no dia em que saíram – exceto o primeiro, que minha mãe comprou na livraria quase aleatoriamente, sem saber da febre que isso viraria – era a primeira edição em português, ainda com a fonte diferente da franquia. Quando eu falo que li no DIA em que saíram, isso tem sentido literal, inclusive pros gigantescos quinto, sexto e sétimo volumes, que virei a noite sem desgrudar dos livros.

Tinha algumas regras, porém, que era esperar pelo lançamento em português e não ler na internet – nunca me dei bem lendo no computador, mas chegaremos a isso mais adiante. Boa parte do prazer da leitura estava em passar as páginas e ver a razão entre páginas futuras e passadas ir diminuindo até acabar o livro.

Minha mãe é psicóloga, e sempre teve consultório dividindo um espaço – comumente chamado de “clínica”, constituído por uma casa ou, atualmente, um andar – com outras colegas. Uma dessas é Tânia, e lembro de muitas festas e comemorações (São João, principalmente) da clínica que aconteceram na casa de Tânia. Como vocês devem saber de outros posts, eu não sou lá a pessoa mais social e festeira que há e gostava de me isolar, nessas comemorações. Agora vou entrar em memórias muito distantes, que podem não corresponder à realidade. Lembro de um quarto da casa com uma grande estante de livros, um tapete e almofadas, que servia tipo um escritório, que não era considerado parte do “ambiente festivo” da casa. Era pra lá que eu ia e passava boa parte do tempo. Esse parênteses todo se amarra com a leitura porque, pra não ficar lá ocioso, os donos da casa – Tânia e Marco Paulo – me indicavam livros que eu começava a ler por lá, e levava pra casa pra terminar.

Algumas dessas indicações moldaram – apresentaram? revelaram? – meu gosto pela ficção. Não eram livros desconhecidos. Eram clássicos, sobre os quais um grande hype seria levantado nos anos seguintes. Pra citar alguns, temos “O Hobbit”, temos “O Senhor dos Anéis”, na primeira edição em português, onde a divisão da história se dava em SEIS livros, ao invés dos três originais – tudo isso muito antes de se começar a pensar nos filmes de Peter Jackson. Foi mais ou menos na mesma época que comecei a jogar RPG, e é difícil abaixar um livro que conta uma história tão épica quanto nossas aventuras imaginárias. Depois teve “O Jogo do Exterminador” (“Ender’s Game”, no original), também parte de uma série, por Orson Scott Card, combinando crianças como protagonistas, guerras, ficção científica da melhor qualidade, e questões filosóficas incríveis. Aqui começava uma nova tendência, que só ia se aprofundar anos à frente. O primeiro e o segundo livro estavam em português, mas o terceiro volume não tinha sido traduzido até então, e minha curiosidade era tanta que peguei emprestado em inglês mesmo – esse aqui eu demorei de ler, MUITO, mas consegui.

Lembro de longas tardes e noites mergulhado nessas jornadas e seus desafios, sem sentir meu tempo passando, lembro de ficar estupefato toda vez que chegava ao fim de um dos livros, mal esperando pela oportunidade de devolvê-lo e pegar o próximo. Lembro de deitar ao lado da janela para que o Sol me esquentasse e iluminasse as páginas, já velhas e amarelas, de um papel poroso e áspero que produzia atrito com as mãos.

Depois, no meio/fim de minha adolescência, fiquei viciado em crônicas. Luis Fernando Veríssimo, para ser mais exato. Li os livros repetidas vezes, e acho que ainda lembro de muitas das minhas favoritas. Aí chegou o vestibular e boa parte de minha leitura passou pra estudar assuntos aleatórios e matar a lista de literatura obrigatória para as provas. Das listas todas (Fuvest, UFBA e UFF), só gostei de alguns livros. Nenhum deles era muito meu gênero, nenhum deles era deliberadamente fantasia, com mundos totalmente originais, mas sim muito mais pautados em cidades ou estados brasileiros, em épocas passadas.

Passado o vestibular, me afastei de livros, de maneira geral, sem perceber direito. Perto da viagem para o Canadá, porém, comecei a ficar preocupado avaliando entre levar ou não-levar os livros que temos aqui em São Paulo, ou ter entretenimento para todas as horas de vôo. Foi aí que resolvi comprar um Kindle. A praticidade do aparato, somada à textura e visibilidade do e-paper me encantaram, e ao abastecer a memória do bicho fui reencontrando essas histórias há muito esquecidas e explorando seus universos com novos olhos, preparados para ver mais fundo do que a história em si, e encontrando significados nas entrelinhas, ou capaz de apreciar melhor as decisões difíceis tomadas pelos personagens. Nenhum deles me decepcionou. Digo isso porque é muito comum com filmes. Tem aqueles que a gente viu no passado, e tem lembrança de como é um puta filme. Reassistindo, anos depois, acabamos por descobrir que não era tão incrível assim, que não era nem um bom filme, na verdade! Então, se nenhum dos livros me decepcionou na segunda leitura, é porque eram bons mesmo!

Alguns livros depois essa fase passou e o Kindle ficou abandonado numa prateleira em Vancouver. Perto desse retorno para o Brasil, desenterrei o menino, recarreguei, e coloquei umas coisas novas nele. O resultado desse revival é que nesse último mês eu li dez livros. Fui atrás de novas histórias, sem indicações dessa vez, e achei tanto coisas que eram divertidas mas rasas, e outros que apesar de não baterem com meu gosto natural acabaram impressionando e não foram totalmente processados – ainda não entendi porque gostei tanto. Curiosamente, nessa mesma época, reencontrei com Tânia algumas vezes para sessões de bioenergética e a base desse post começou a se formar em minha cabeça.

Só não consegui escrever antes porque tava viciado nos livros e terminando mais um!
Ler muito me dá uma puta vontade de escrever. Se preparem.

Acabei fugindo – sem querer – do cliché – mas nem por isso menos real – de ser transportado para outros mundos e viver aventuras impossíveis, porque todo e qualquer texto que fala de leitura acaba enveredando por esse caminho. Falei muito mais de mim, e da minha relação com os livros. Curioso. Ok, chega de auto-análise.

Day-to-Day

Whiplash, Tove Lo, Distância e um receio dos infernos.

June 23, 2015

Esse post era pra ser sobre só um desses temas, já tá nos rascunhos há mil anos, mas tive que mudar. Hoje foi um dia estranho, e fiquei com vontade de escrever, então vamos como diz a canção: “foda-se, foda-se foda-se”.

Não sei se era meu estado de espírito, mas hoje me pareceu o primeiro dia verdadeiramente cinzento desde que cheguei em Salvador, exatamente um mês atrás. O dia meio que passou por mim, e não o contrário, como é normalmente. Ficamos em casa, eu, meu pai e minha mãe, aproveitando um São João em isolamento social, vendo filmes. Começamos por Guardians of the Galaxy, que achei beeeem mais fraco do que quando vi no cinema, e depois fomos pra Whiplash.

A primeira vez que vi Whiplash, alguns meses atrás, eu tinha achado foda. Pelo lado positivo (?), não tinha me identificado com o protagonista, na loucura dele de ser um dos melhores, de dormir do lado da bateria, terminar com a menina porque na cabeça dele ela ia mais atrapalhar do que ajudar no caminho dele, praticar o tempo todo. Dessa vez, fui vendo analogias mil entre o pobre Andrew e atitudes minhas que tanto comentei logo que cheguei de volta por aqui. De não conseguir desligar, de não tirar o trabalho da cabeça, de dedicar todo o meu tempo a desenvolver meus projetos e idéias, de ligar um “foda-se” pra todo e qualquer outro campo da minha vida, sem sequer perceber – eu sei que tenho falado isso pra caralho por aqui, mas é uma coisa que eu ainda não sinto que resolveu. Alguma hora eu vou parar de falar sobre o assunto, mas até lá vocês vão ter que me aguentar. A grande diferença é que pra mim o Terence Fletcher não é uma pessoa externa, um professor, um colega, um ídolo, e sim uma parte de mim mesmo, que insiste que o que tá na tela ainda não é bom o suficiente, e que eu posso fazer melhor, e melhor. Não que eu esteja pensando ou sentindo isso AGORA, mas só perceber essa conexão já é meio assustador.

Moving on… segundo assunto, Tove Lo. Esse era o tema original do post. Descobri essa menina na minha fase de Songza, quando eu já tinha enchido o saco de todas as músicas que moram no meu computador, e queria ouvir coisas novas e aleatórias. Ela apareceu numa playlist de blogged-out pop, com essa música aqui embaixo. Nunca vi o clipe, mas pela letra, imagino que seja pelo menos um pouco gráfico.

Bom, logo depois que eu descobri essa música, eu fiquei viciado nela. Quando eu começo a ouvir uma música em loop, acho que as primeiras cem vezes eu só tô na melodia, na batida, na parte que gruda. Depois é que eu começo a prestar atenção na letra mesmo, eu geralmente pego só uns trechinhos e é isso aí. No meu vício, fui atrás do disco completo (Queen of the Clouds) e ouvi loucamente durante aqueles cinco dias onde trabalhei feito um condenado no pOrtal, porque me dava um pique pra trabalhar surreal, que eu não conseguia entender. Quase no fim do processo, enquanto fazia a rotoscopia da porta – um serviço mecânico e repetitivo, que não exige nenhum raciocínio, só ir passando os frames e ajustando alguns pontos – resolvi começar a prestar atenção nas letras. A produtividade continuava alta, mas as letras falam de relacionamentos muito desajustados/feridos, e pra variar fui me identificando com coisas ali presentes – vamos ressaltar aqui que dependendo do momento, eu me identifico com coisas que muitas vezes não fazem sentido nenhum – de forma que meu pique pra trabalhar continuava alto, mas meu estado de espírito e humor iam afundando vertiginosamente.

Depois fui percebendo que as letras não falavam necessariamente de coisas que eu me sentia parte AGORA, e sim de coisas que eu carrego comigo desde cedo na minha vida amorosa (?), de histórias que ouvi, experiências e situações vividas, crises, términos, começos e complicações diversas, por isso que ecoava tanto dentro de mim, cada uma delas um espinho na estrada de 2005 até hoje. Algumas letras confirmando situações passadas, outras indicando possibilidades por vir, ou apontando em direções que eu definitivamente não quero seguir, mas muitas vezes não vejo saída. Tá confuso pra caralho porque tá vago o suficiente pra ser incompreensível, né? Bom, foda-se! hehe! Abrir meus relacionamentos nesse blog ainda não é algo que eu pretendo fazer, então pulem uns pedaços do texto ou leiam as letras da menina e fiquem teorizando em cima de quê eu tô falando.

Enfim, pra fechar o assunto, agora eu tenho um drama toda vez que cogito ouvir o disco: a euforia da batida e melodia vai superar o deslizamento de estado de espírito? O segundo efeito tende a durar mais, mas se eu começar a desistir de músicas que me dão sensações estranhas, minhas playlists vão ficar muito restritas!

Passando pro terceiro e quarto assuntos, que são um duo.

Estar um mês longe de Vancouver certamente trouxe muita coisa boa. Eu pude ir em médicos, fazer não-sei-quantos tipos de terapia e tratamentos pontuais, comer comida de casa, começar a ganhar peso, pensar PRA CARALHO na vida, esfriar a cabeça, ver os problemas com alguma distância, entender muita coisa sobre mim, trabalhar muito em aspectos da minha personalidade que eu sempre negligenciei – fundamentalmente a minha distância mesmo de quem é próximo, não demonstrar o valor que as pessoas ao meu redor tem, investir nas amizades, essas coisas – e pensar que “amanhã eu também não vou ter que encarar os problemas de frente”.

Aí entramos na última semana de Bahia e a sensação de ter que encarar as coisas de volta em Vancouver é boa e ruim. Na verdade, é animadora e assustadora. Depende puramente de como eu imagino os resultados. Animadora porque agora parece que dá pra começar a mudar, pra melhor, e conseguir tudo – ou pelo menos boa parte – do que eu sonhava quando fomos pro Canadá, ano passado. Assustadora porque as mudanças podem não ser no caminho que eu realmente desejo que elas sejam. Sempre tem uma solução que funciona, mas é foda. O lado pessimista anda ganhando. É difícil se acostumar com a idéia de voltar pra um cenário onde a vida tava complicada ao ponto de eu ter que fugir, literalmente, por um mês. Mesmo sentindo as mudanças desse tempo no meu dia-a-dia aqui, não é fácil me convencer que toda a melhora vai se manter, ao invés de descer pelo ralo de volta ao cenário anterior – uma merda – e acreditar que a gente vai conseguir resolver tudo. Eu tô disposto a lutar, meu receio é estar lutando uma guerra sozinho.

Sei lá, acho que esse post nem seria escrito se eu não tivesse visto Whiplash, ou não tivesse voltado pra casa cantando/gritando a plenos pulmões até arranhar a garganta porque não achei outro jeito de botar pra fora a sensação cretina que tava me arrastando. Funcionou, um pouco. Agora vou ver se escrevo um post menos deprimente.

Day-to-Day

É Uma Selva Lá Fora!

June 14, 2015

Hoje foi dia de fotografias animais. De manhã saí pra filmar o World Test do Iscorama 42 (pra não enrolar tanto com esse vídeo) com minha mãe alimentando uma legião de micos, e tínhamos acabado de almoçar quando meu pai chamou a gente pra ver uma cobrinha que tava aqui na porta. Pequenininha. Capturamos e soltamos no mato de novo, longe de casa. Alguém aí sabe o nome/espécie/qualquer coisa desse bicho?


Day-to-Day

Testes de Lente, Afinal.

June 12, 2015

Hoje foi a Sexta Feira com mais cara de Sábado de todas até agora. Terminei de ler mais um livro (o sexto, ou sétimo, em duas semanas), joguei o terceiro episódio de Life Is Strange – que a cada episódio se revela melhor e mais interessante, mantendo escolhas como parte essencial da trama – e comecei White Night, que tem um conceito visual muito foda, mas a jogabilidade não é tão incrível assim.

Trabalhei um bocado no último plano do reel, que de repente começou a se encaixar e funcionar de uma maneira totalmente inesperada, e agora no final da tarde filmei os famigerados testes do Iscorama 54, que tô tentando rodar há MESES. Acho que o vídeo fica pronto até segunda. Vou fazer uma iniciativa de mandar meu guia para o nofilmschool e ver se os caras divulgam por lá. Ouvi rumores que vai rolar uma versão impressa não-oficial para estudantes de cinema em alguma escola na Holanda e tô animado com essas coisas de novo.

Lila me ajudou como modelo, e Kenzo também, como quem tá fazendo favor. Foi divertido, pegamos um solzinho leve de fim da tarde que deixou os planos lindos. De noite vamos gravar os low-light e pronto, é só editar. Já tô convertendo tudo. Vamo que vamo.



Day-to-Day

WeatherCaster – Script.

June 10, 2015

After over eight thousand pictures – half of them thrown directly in the trash – and five days of timelapsing, being the first two and a half a failed attempt due to poor planning, I finally have the background footage for the app’s video. Next monday I’ll shoot the “advertising” part of it, all science-like, and the greenscreen elements to finish the piece. In the meanwhile, here’s the processed HDR timelapse. A triple exposure every two minutes for a little over 48 hours. Around 12 hours of tone mapping on top of that and voilá! Now I need to time remap it according to the script below and the app’s interface, plus enhance the rainy parts in comp – as expected.

Below is the voice over/scientist explanation that runs over the video. Target length is 30 seconds.

Sometimes you get out of bed and the weather isn’t quite what you wanted for the day. To solve this issue, B.A.C. is releasing the Weather Caster, an easy to use app that allows you to suit the environment to YOUR needs!

Woke up late for work? Bring in the rain to take the blame. Or enjoy a sunny day outside. Love sunsets? Sure, not a problem. Want the day or night to never end or go by in a flash? All of this at the tip of your fingers. Download the Weather Caster now!


DISCLAIMER: This product does not prevent the actual passing of time.

Day-to-Day

Sem Saída.

June 9, 2015

Essa história é inspirada em fatos reais. Pra ser preciso, é baseada em acontecimentos de ontem.

Era uma segunda feira normal de inverno na Rua das Calopsitas, número 79. O Sol estava estranhamente brilhante durante a manhã, mas não era lá surpreendente para padrões soteropolitanos. Já era perto meio dia quando Madalena se convenceu que era uma boa idéia sair da cama e se arrastar até a cozinha para ver que tipo de comida encontrava por lá, se seus filhos tinham deixado algo do café da manhã ou se era melhor começar a pensar em almoço.

Com o que para ela parecia o maior esforço do mundo levantou as pálpebras e abriu seus cativantes olhos verdes. Dizem que olhos verdes são um defeito genético. É bem provável que seja mesmo, uma vez que nenhum de seus filhos herdou o traço. “Foi azar”, ela responde quando alguém comenta sobre o assunto. Voltando aos olhos, parecem duas esmeraldas, grandes, enormes, na verdade. Puras e perfeitamente redondas. Dando alguns passos, Mada – sua mãe a chama por esse apelido – pára em frente ao espelho e repara como aquele pijama nunca fica velho. Seus cabelos grisalhos indicam que ela não é tão jovem quanto gostaria.

Mada boceja e se espreguiça longamente. Se não tiver café da manhã posto, é bom que o tempo de se espreguiçar já diminui a distância até o almoço. No caminho para a cozinha, passa por Lola na escada. Sua filha mais nova, herdou o cabelo macio e o mau humor. Talvez até um pouco demais do mau humor. Lola grunhe alguma coisa incompreensível conforme cruza com sua mãe. Na cozinha, Mada vê apenas alguns farelos de comida. “Eu devia esperar até o almoço”, ela pensa, sentindo suas gordurinhas balançarem de leve enquanto anda. Seu estomago ronca em resposta. A cozinha está em polvorosa, com pessoas indo de um lado para o outro preparando almoço, café e arrumando a casa. “Alguém aqui vai ter que me ajudar”. Mada é arrogante de vez em quando, mas não é totalmente incompreensível. Ela também tem seus momentos de muito carinho.

Levantando a cabeça, Mada lança um longo miado. Ah, é… Não falei desse detalhe: Madalena é uma gata. SRD – Sem Raça Definida, popularmente conhecida como “Vira Lata” -, doze anos de idade e duas ninhadas de filhotes. Seu filho mais velho, Hakuna, já faleceu. Foi cedo. Nino e Lola ainda vivem por perto. Além deles, Mada divide a casa com Kiko – o mais velho -, Kenzo – o sem teto -, e Piatã – o filhote sem noção. Nenhum deles particularmente importante nos eventos de hoje, mas bastante relevantes na história de Madalena.

Não muito depois desse episódio do almoço, o tempo mudou, e a chuva começou. Mada e seus colegas felinos vivem dentro de casa. Experiências anteriores com resultados terríveis (envolvendo arame farpado, cobras, veneno, sustos, fugas e desaparecimentos prolongados) selaram esse destino para eles. Não que eles se incomodem muito, desde que possam passear um pouquinho de vez em quando, acompanhados por um adulto. Mada tradicionalmente gosta de dar uma volta ao redor da casa, comer bastante grama no trajeto – de diferentes partes do quintal – e um pouquinho de capim santo para refrescar o paladar antes de entrar de volta pela porta da cozinha. Comportada, não precisa de coleira, não corre e não foge, fica sempre por perto dos pés que a acompanham.

Era segunda feira, e agora, com chuva. Todo mundo trabalhando e ninguém para passear. O dia pareceu uma eternidade. “Vocês acham que é fácil conseguir inspiração pra dormir o tanto que a gente dorme? Tem uma hora que não tem mais o que sonhar, colegas!”. A técnica de Madalena pra resolver essa questão é variar as camas. Primeiro perto da mesa, depois no sofá, depois em cima de alguns colchões e intercalar cada etapa com uma excursão ao pote de ração e discussões acaloradas com os outros moradores da casa se eles ficarem no caminho.

O Sol parece que se põe mais cedo nesses dias de chuva ininterrupta, mas as horas definitivamente não passam mais rápido. Lá pelas oito da noite, depois de seis sonecas, depois de ficar assistindo a chuva lá fora, depois de receber dengo de sua mãe, depois de cheirar tudo que estava em cima da mesa, depois de beber água em todos os potinhos espalhados pela casa e mais um tanto de água de chuva, só pra comparar se era diferente, Madalena estava entediada. Subia as escadas depois de seu terceiro jantar, em direção à sala onde seus pais humanos jantavam. Ganhou uns cafunés e por fim se aninhou, sob a proteção da mesa, em cima de uma das cadeiras vazias para ficar assistindo a chuva mais um pouco.

Lola passeava ao redor da mesa, fazendo um escarcéu, pedindo para sair, miando alucinadamente e furando as pessoas com suas garrinhas amoladas. Lola não gosta de ser contrariada, e é preciso muito pouco – quase nada – para contrariá-la. A vantagem desse escândalo perto da mesa é que geralmente funciona, um dos adultos termina de comer, se levanta e abre uma das portas de vidro ao lado, liberando a saída e acompanhando o passeio. Mada queria passear também, mas a disposição para aquele esforço todo minguava a cada gota d’água que batia no vidro. Aí ela viu um vagalume. Ela não sabia o nome “vagalume”, para ela era uma luzinha piscando no ar, lá fora.

Enquanto isso os humanos terminam de tirar a mesa do jantar e se preparam para ir dormir. Apagam a luz da sala e isso desencadeia um estalo muito mais alto que o usual.

Se você já conviveu com gatos, sabe como o bicho fica quando alguma coisa pega sua atenção. Pois bem, Mada estava completamente hipnotizada. Ela sentia seu corpo deitado confortavelmente na cadeira, mas só ouvia o bater das asas do inseto. Sua visão era apenas aquela coisa piscando no ar, a chuva era só um pano de fundo pra tudo. Suas pupilas dilatadas pelo instinto de caça, os bigodes praticamente sentiam cada gota que passava ao seu redor. O tempo se dilata. Lá fora, na grama verdinha e macia que ela não sentiu hoje, no ar com cheiro de mato que não chega dentro de casa, nos vários tipos de chão que passam debaixo de suas patas, tão diferentes do chão de pedra lisa do lado de dentro, do horizonte distante e colorido ao invés dos rodapés bege e paredes brancas…

Madalena subitamente se vê do lado de fora da casa, pulando em direção à presa e acertando o alvo com a suas patas. “Peguei!” ela comemora por uma fração de segundo antes de aterrisar no chão de pedra molhada. A chuva cai sem piedade. “Como eu vim parar aqui?!”. Mada se vira para a porta de vidro e ela está fechada. Maçaneta fora de alcance. “Será que eu…”, mas seus pensamentos não conseguem se organizar com toda essa água caindo do céu. Suas vontades entram em conflito, sair de casa e passear versus estar do lado de dentro, protegida da chuva. O temor de água vence e ela dispara de volta em direção à porta de vidro, miando desesperada por socorro.

“Alguém me resgata, gente! Eu não quero estar aqui fora agora! Me ajuda!”

Para sua sorte, os humanos também acharam aquele estalo estranho e foram investigar se alguma coisa tinha caído, quebrado, batido ou se algum outro gato estava aprontando arte. Qual não foi a surpresa ao verem Madalena do lado de fora, com seus olhos verdes esbugalhados, chorando para entrar em casa?

“Mas Mada, como você chegou aí fora?” – Perguntaram em voz alta enquanto abriam a porta de vidro.

“Nem se você entendesse o que eu falo, eu ia saber explicar!”, ela mia em revolta, tentando colocar as patinhas no chão e se sacodir pra secar aquele aguaceiro todo.

A partir de então, por motivos de falta de explicação racional, as portas de vidro passaram a ser trancadas. A única justificativa plausível para os humanos é de que a gata virou a maçaneta sozinha, saiu e a porta se fechou atrás dela. Mada sabe que não foi bem assim. Ela não sabe como foi, mas sabe que não foi assim. O frio da chuva começa a espairecer, e depois de um bom banho de língua, a melhor saída é voltar a dormir, porque essa história toda de teletransporte é muito cansativa e ela precisa dormir bem pra pensar no assunto no dia seguinte. “Quantas possibilidades!”

Day-to-Day

(m)Eu Monstro.

June 6, 2015

Eu sou um sujeito calmo, a essa altura do campeonato não é mais arrogante falar sobre mim mesmo. Também sou uma pessoa boa, majoritariamente. Não faço nada com objetivo de desagradar ou ferir ninguém, inclusive quando percebo que isso possa ser uma consequência indireta dos meus atos. Acho que meus momentos mais “agressivos” são dirigindo, e mesmo assim, o ápice é xingar com as janelas fechadas, questionar a existência de certos motoristas e não dar passagem pra um ou outro perdido que não usa a seta sinalizar ou que tenta cortar filas, se achando malandrão. Fora esses casos, eu sou bom e quieto.

Muito, mas muito mesmo, raramente eu explodo com alguma coisa, e são situações pontuais. Nada acumulado ao longo de mais do que três ou quatro horas. Pra passar uma noção de quão incomum isso é, meus amigos mais próximos só devem ter visto acontecer umas duas ou três vezes nos últimos doze anos. Eu mesmo vi mais algumas, mas estava sozinho, “contra o mundo”, contra o Detran ou contra filas imbecis. Nessas ocasiões a explosão não passa de um mau humor e uma linha de xingamentos ininterrupta em voz baixa, questionando a validade da coisa que me irritou.

Gosto de tudo em que trabalho e apesar de me estressar com alguns pedidos de alterações, geralmente é por achar que são desnecessárias ou por preguiça/vontade de declarar o serviço por terminado. Esse stress também não é lá grande coisa, tipo um “Ai, caralho, lá vamos nós arrumar essa porcaria de novo, cadê aqueles keyframes todos?”.

Uma das minhas alegrias de vida foi a mudança de Salvador para São Paulo. Sempre me identifiquei mais com o ritmo paulistano do que com o soteropolitano. Achei meu próprio ritmo lá e fui com ele por uns bons seis anos. Aí eu e a May resolvemos ir pra Vancouver. Fui na frente, três meses. Já contei essa parte mil vezes, mas dessa eu vou tentar entender – e explicar – como tudo isso escrito até aqui se junta e afeta esse momento de minha pífia existência.

Por motivos de entendimento visual, digamos que eu tenha três “tanques”, um para trabalho, um para coisas de casa, e um só pra May, que ficam um em cima do outro e a tampa do de baixo só se abre quando o de cima tá leve o suficiente. Quando um sobrecarrega, explode, e aí eu viro bicho, como explicado acima. Trabalho, Casa e May. São os três elementos principais que compõem meu dia-a-dia. Nesses três primeiros meses sozinho, o tanque da May tinha espaço de sobra. Eu já tinha passado por um relacionamento à distância – dos difíceis – e a gente tava super bem nesse processo. Quem viveu sabe: a melhor parte de um relacionamento à distância é o reencontro. Voltemos aos tanques. Em trabalho agora entrava a VFS. Entrava não, inundava, enchendo e esvaziando a cada dia, a cada assignment, onde sempre me lancei como se fosse o único, mirando alto e fazendo sacrifícios pra alcançar. O tanque da casa tava ok. Tão ok que eu comecei a encher ele com a VFS também, porque não tava dando conta. Quando eu devia estar relaxando, passeando, socializando, whatever, eu comecei a trabalhar noite a dentro por antecipação ao fim do Term que indicava uma sobrecarga.

Inconscientemente comecei a jogar a escola no tanque da May também porque os outros dois constantemente chegavam perto de estourar. Aí foi chegando a hora da May chegar, a melhor parte de tudo. O problema é que quando ela chegou os outros dois tanques estavam cheios e eu não conseguia chegar no dela, pra estar inteiro no que quer que fizéssemos. E isso era durante o break entre um term e outro. Quando começou o term 2, a parada ficou ainda mais tensa porque o ritmo era ainda mais intenso, e agora eu tinha que lidar com tudo ao mesmo tempo, a gente morando junto e tal. Não é difícil prever, antes do fim do term, dois desses espaços quebraram. O do trabalho e o da May. Não necessariamente nessa ordem.

O do trabalho quebrou de um jeito pessimista, não me sentia confiante no que tava fazendo, não achava que ia conseguir qualquer coisa quando acabasse o curso, “qual o objetivo de tudo isso, se a gente vai voltar pra mesma coisa depois?”, “e se a gente não conseguir ficar no Canadá?”. Insegurança do caralho, que é algo totalmente fora da lista de coisas que sei lidar. Sério, minha assinatura do gmail foi “Gênio de Plantão – A modéstia nunca foi o meu forte” por anos e anos, de tão seguro e brincalhão que eu era em relação às minhas habilidades. Depois de um tempo eu tirei a assinatura, por motivos profissionais, pra lidar com pessoas que eu não conhecia ainda e que podiam levar aquilo tudo muito a sério.

Com a May foi diferente. Bem diferente, porque com ela não deu a “sorte” de eu “só” ficar inseguro. Em uma noite, que não lembro nem mais entramos no assunto, eu explodi e não foi com violência. Eu falei coisas que até hoje me entristecem pra caralho só de lembrar. Eu tenho pra mim que nunca vi a May tão triste, e pior que isso, triste por algo que eu fiz. Descobri essa coisa dentro de mim, capaz de tanto estrago com tão pouco esforço que me assustei. Até hoje não me perdoei por essa conversa porque não consigo lidar e aceitar que isso também seja eu. A capacidade de machucar tão profundamente outra pessoa – a que eu mais amo e mais me ama -, que vai contra tudo que eu me esforço e luto. Foi tão terrível que não teve nem briga, ela só caiu. Depois veio a insegurança, o medo de que isso acontecesse de novo, o medo que me fez sabotar tudo que a gente tem junto – ainda inconscientemente – pra não correr risco de repetir o feito, em nenhuma escala.

Ao longo das semanas e meses seguintes, isso ficou em mim. Não tinha conseguido identificar direito até uns dias atrás, já aqui em Salvador. Uma sensação de não querer lutar, de não querer seguir adiante, de não querer enfrentar os desafios, de não achar que eu mereço fazer parte de qualquer coisa, porque me vejo como o monstro, sempre esperando a pior ocasião pra foder a porra toda. Um sentimento de não ter valor que vem de mim mesmo, e não de terceiros, e um medo sempre presente de deixar essa coisa sair. Por isso que eu me saboto, me enfraqueço, não sinto fome, é uma parte de mim tentando enfraquecer o todo, porque assim, a parte ruim enfraquece também. O que mais me preocupa agora é que não sei como sair do ciclo, nem sinto que eu – como um todo – quero sair. Uma parte de mim quer, e tô tentando redirecionar toda a força pra ela, mas tá foda.

Isso é uma primeira leitura, com algumas linhas de raciocínio interconectadas. Pode ser que não seja tão trágico como eu coloco aqui, pode ser que seja exatamente isso.